“A estupidez é infinitamente mais interessante que a inteligência. A inteligência tem …

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O DIRETOR QUE NÃO SE ILUDIA

Claude Chabrol foi um mestre do suspense e um crítico agudo da pequena burguesia. Mas era, acima de tudo, um homem que assistia os filmes e os personagens pelo que eles são: criações tão falíveis e insignificantes (e, às vezes, fascinantes) quanto as pessoas que os criam.

Claude Chabrol (Paris, 24 de junho de 1930 – Paris, 12 de setembro de 2010), cineasta
Disse certa feita Claude Chabrol:

“A estupidez é infinitamente mais interessante que a inteligência. A inteligência tem limites, mas a estupidez, não”.

A frase diz um mundo de coisas sobre o diretor. Primeiro, as mais óbvias: que Chabrol, como bom francês, era um cultor do bon mot, a tirada jocosa (e um grande cultor, também, da boa mesa, como denuncia a figura roliça, uma das poucas coisas em que ele não enxergava lá muita comédia). E depois que, como convém a um cineasta que se preze, era um observador agudo da natureza humana – tão agudo que o escárnio e a desilusão que às vezes advêm de estudar muito a fundo essa matéria acabavam por se transmutar no seu oposto: um certo deslumbramento diante da constatação de que, por ser capaz de infinita estupidez, o ser humano é também infinitamente surpreendente e imprevisível. E aí já se passou aos aspectos mais sinuosos da personalidade de Chabrol. Na maioria, os cerca de setenta filmes que ele fez tratam, no seu estrato mais fundamental, disso: as más ideias, decisões ruins e condutas equivocadas que resultam da ignorância, do preconceito, da frivolidade ou da falta de autoconhecimento.
Muitas vezes, também, eles tratam ao mesmo tempo, e sem necessidade de exclusão, de outra coisa ainda: o que os outros, por hipocrisia ou estultice, consideram ser uma conduta equivocada.
Só como sugestão, um exemplo magnífico. Em “Um Assunto de Mulheres”, de 1988, Isabelle Huppert interpreta Marie Latour, uma mulher que, na França ocupada pelos nazistas, faz abortos para prostitutas ou para mulheres respeitáveis que engravidaram de alemães.
É um serviço sujo – mas muitas necessitam dele e recorrem a Marie, que o realiza não por idealismo, mas por dinheiro mesmo (o qual, inclusive, permite que ela esnobe o marido indesejado e corra atrás de homens mais atraentes). Finda a guerra, Marie é decapitada na guilhotina (o caso é verídico). No tratamento de Chabrol, não há veredictos éticos. Mas há dois fatos incontornáveis. Um, Marie burramente se expôs. Dois, foi executada para salvaguardar uma moral que a própria cumplicidade com os invasores aniquilara, mas que, com a derrota deles, foi retomada às pressas, justamente para encobrir essa cumplicidade. Vale dizer que Chabrol várias vezes se pronunciou contra leituras assim políticas ou sociológicas de seus filmes. “Filmes não existem para transmitir mensagens, mas para entreter”, pregava. Por isso ele gostava tanto de fazer mistérios, policiais e suspenses. “Um policial tem de ser excepcionalmente ruim para que um espectador reclame de tê-lo visto. Assim, reduzo as queixas contra meu trabalho ao mínimo”, brincava.
É inevitável que, ao mencionar Chabrol, se enumere que ele foi 1) o Hitchcock francês: 2) o grande satirista da pequena burguesia: 3) o autor de muitos filmes bons, e de um número considerável de filmes ruins e medianos. Tudo verdade. Mas o homem era furtivo, e tomar essas afirmações pelo seu valor nominal resulta em um retrato incompleto. A admiração pelo mestre do suspense, por exemplo, era genuína e vinha de seus tempos como crítico da revista Cahiers du Cinéma, a mesma a partir da qual se lançaram os cineastas François Truffaut e Jean-Luc Godard. Mas algo substantivo o separava de seu inspirador: as depravações e perversões que tanto excitavam Hitchcock não fermentavam em sua própria psicologia. Eram, para ele, mero tema e objeto. Por causa dessa distância algo clínica, Chabrol era um autor simultaneamente mais superficial e mais profundo que Hitchcock. Foi também, de fato, um satirista impiedoso das estreitezas e modos burgueses, mas nunca escondeu ser um de seus mais acabados representantes: filho de um farmacêutico que tentou encaminhá-lo para a mesma profissão virtuosa e de uma mãe que não queria que ele fosse cineasta porque o meio estava cheio de homossexuais (“Como eu já concluíra que era heterossexual, achei que não era nisso que o cinema me mudaria”). Chabrol usou a herança da primeira mulher para virar diretor, era um entusiasta dos confortos da vida (comida, bebida, cachimbo, l”amour) e nunca foi de viver no fio da navalha. Sobre a suspeitada liaison com a musa de suas últimas décadas, a exepcional Isabelle Huppert, negou: “Ao contrário de diretores como Ingmar Bergman, não me sinto obrigado a ter casos com minhas estrelas. Não gosto de agitação no set”.
A parte mais curiosa, porém, é a que se refere aos filmes excelentes, medianos e ruins que rodou com a regularidade de um funcionário. Não foram Truffaut nem Godard, Alain Resnais, Jacques Rivette ou Eric Rohmer os lançadores da nouvelle vague (ou “nova onda”), o movimento que rompeu com o academicismo do cinema francês de então. Foi Chabrol quem o inaugurou, em 1958, com Nas Garras do Vício. E foi Chabrol, com sua regularidade, seu bem-humorado desprezo pelas “mensagens” e a inteligência sagaz que nunca se deixou iludir pelas presunções humanas, o mais persistente desconstrutor e desmistificador da onda que deflagrara. É ver os filmes de Chabrol para perceber que ele não dava ponto sem nó – nem dava nós que não pudesse ele mesmo, sem pena nenhuma desfazer.

(Fonte: Veja, 7 de maio, 1980 – Edição n° 609 – Cinema – Pág; 110/111)
(Fonte: Veja, 22 de setembro, 2010 – Edição n° 2183 – ANO 43 – N° 38 – Cinema/Memória/ Por Isabela Boscov – Pág; 114/115)

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