Selma Egrei, musa da pornochanchada, alternava filmes de baixo orçamento com teatro engajado. Na TV, onde agora teve seu talento redescoberto, ela é o primeiro nome aventado para personagens densos. Depois dos seriados Sessão de Terapia e Felizes para Sempre?
Como se sabe, existem vários tipos de mulheres lindas – aquela que se olha no espelho o tempo todo; a que se utiliza da beleza para abrir portas; a que otimiza na hora de escolher um bom partido; a que cobra por hora; a que prefere ser reconhecida pela inteligência. E tem Selma Egrei. Quando se toca nesse assunto com a atriz de 1,70 metro, morena de olhos oblíquos, muito azuis, nariz talhado, queixo na mesma linha, ela fica quase mal-humorada. Se alguém insiste em falar da extraordinária beleza que ela preservou com a maior dignidade na fase madura, vem uma expressão de cansaço. “Teve um diretor de TV que tentou me convencer a fazer um papel supostamente importante, dizendo que eu ia ficar loira, ser capa de revista, eu disse: ‘Não!’”, conta, rindo. “Eu não me encaixava naquilo, não combina comigo. Detesto badalação, festa. Só vou nas de estreia de novela porque sou obrigada.” Aparentemente, não se trata de um caso de “marketing invertido” – tipo falsa modéstia. “Eu sou hippie, né?”
Selma Egrei apareceu no hall do hotel onde a Globo a está hospedando, na Barra da Tijuca, vestindo uma camiseta estampada largona, calça vermelha estilo pijamão e Crocs cor-de-rosa – zero maquiagem. Ela está no Rio por conta da pré-produção da próxima novela das 9, Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa, na qual fará a mãe de Rodrigo Santoro, na primeira fase, e a de Antonio Fagundes, na segunda. A personagem integra o núcleo rico da história, que se passa às margens do Rio São Francisco e vai da época da ditadura e até os dias atuais. “Meu personagem começa com 48 anos e termina com 100. Sou a veia louca.” O diretor Luiz Fernando Carvalho buscava uma atriz que tivesse preservado as marcas do tempo no rosto para interpretar com fidedignidade a personagem amargurada. Carvalho explicou a Selma que não é fácil encontrar uma atriz de 66 anos “normal” (sem intervenções cirúrgicas). “Ele disse: ‘Suas rugas favorecem, me interessa a sua ‘vivência’”, diz, rindo.
Apesar de parecer animada com o projeto, a atriz não nega que sempre teve má vontade com televisão. Desde que se formou na Escola de Arte Dramática da USP, em 1972, resistiu o quanto pôde aos convites para trabalhar em novelas. O teatro era sua prioridade, seguido do cinema, e, por isso, Selma acabou ficando conhecida apenas em círculos específicos. Na verdade, a TV também nunca deu a ela grandes oportunidades. Só agora, na terceira idade, parecem ter descoberto seu indiscutível talento. Por sua vez, em um gesto inédito, Selma resolveu consentir o assédio. Incensada em 2012, graças ao sucesso do seriado cult Sessão de Terapia (GNT), no qual fazia o papel da psicanalista Dora Aguiar, ela passou a ser disputada a tapa pelos produtores de elenco. Selma Egrei está na moda! Na sequência de Sessão, fez a professora Norma, de Felizes para Sempre?, dirigida por Fernando Meirelles. “Oh!”, aplaudiu a crítica, embevecida com a persona densa de oldie Selma.
Ela reage aos aplausos com um misto de gratidão e cinismo. “Aha.” Mas fala sério quando se refere a Meirelles: “Uma figura maravilhosa, sensível, delicado, fala baixinho, nunca levanta a voz.” Ele, por sua vez, coloca Selma nas alturas: “Ela é uma das melhores atrizes da sua geração. Tem profundidade, interpreta sem fazer esforço, sem caras nem trejeitos. A gente lê o que o personagem está sentindo sem saber como ela faz isso. A emoção parece vir de dentro mesmo. Fora que é linda”.
NINFA DIABÓLICA
O telespectador com menos de 35 anos que a assistiu, por exemplo, no especial Os Experientes, exibido em abril do ano passado pela Globo, dificilmente tem cabedal de cultura erótica para saber que aquela tiazinha atuou em mais de 40 pornochanchadas. Era um gênero de cinema que juntava galãs escalados na rua, mocinhas peladas, roteiros improváveis e custo (praticamente) zero. Apesar de considerar a maior parte dos filmes “um lixo”, e de nunca mais ter assistido a nenhum deles, Selma tem excelentes histórias da época: “Muitos simplesmente não tinham roteiros, às vezes nem diálogos. Uma vez, um diretor disse: ‘Tira a roupa e sai correndo!’. E eu fui, pelada, pelas ruas de uma cidade do interior. Era só isso. E o cara gritava: ‘Vai!’ ‘Linda!’, ‘Maravilha!’”. Parece incoerente que uma atriz formada na USP, crítica xiita da TV, topasse fazer filmes com nomes como Ninfas Diabólicas; Sexo, Sua Única Arma e Emmanuelle Tropical. Ela explica: “Tinha muito improviso nesses filmes, era feito como dava, de uma maneira quase artesanal. Eu acreditava naquela aventura. Na TV tudo era padronizado”.
Descendente de italianos do bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo, filha única de um escriturário e de uma dona de casa, Selma conta que seus pais reagiram mal quando ela resolveu fazer teatro. “Eu quis me juntar a um grupo amador, na época da escola, e eles me proibiram.” Imagine o que não foi para eles, depois, assistir aos filmes que a filha estrelava. Os dois se perguntavam, incrédulos, se era aquilo que a filha tinha aprendido na escola de arte da USP. “Foi uma guerra”, lembra Selma. Ela parece não (querer) lembrar muito daquele período. Com um tom vago, como se estivesse recordando um sonho, fala de cenas de filmes, ou de filmagens, sem discernir muito realidade e ficção. Diz que foi envolvida pelas situações. “Vejo hoje que as colegas (atrizes) têm assessor, agente, advogado, acho que poderia ter sido mais organizada. Não assinava contrato, nem autorização de uso de imagem, nada. Uma vez, eu estava fazendo teatro no interior, e o pessoal da produção me disse que tinha um filme comigo em cartaz na cidade. Fui até o cinema, de curiosidade, e vi que eles colocaram um pôster de uma foto minha na porta, só que o filme que estava passando não era o que eu tinha feito. O produtor vendia a foto, sem me consultar, para o exibidor da cidadezinha atrair público.”
BACH & SCHUBERT
Para não dizer que nada se aproveitou daquele período, a atriz salva alguns diretores, como Walter Hugo Khouri, Carlos Reichenbach e Fauzi Mansur. Khouri gostava de histórias sobrenaturais e, segundo Selma, muitas vezes inventava os diálogos na hora da cena. Costumava convencê-la a participar de seus delírios na base da música clássica. “Ele colocava pra tocar compositores que eu adorava, Bach, Schubert, e me deixava fechada em um quarto.” No fim de um tempo, ela já estava acreditando que o filme seria um parente dos “Concertos de Brandenburgo”, ou da “Sinfonia Inacabada” – e topava fazer. Selma reconhece que tem um lado, digamos, dispersivo, mas hoje ela encara sua filmografia com os pés pregados no chão: “Tem gente que vê a pornochanchada como um movimento cultural do underground, promovido para driblar a censura no período militar, mas eu não acredito em nada nisso”.
Se por um lado ela disse muitos e peremptórios “não!” para convites da TV, por outro mergulhava com tudo nas maiores frias. Em 1976, o cineasta Sylvio Back resolveu reunir “as atrizes do (Walter Hugo) Khouri” (Selma, Lilian Lemmertz e Kate Hansen), em um filme chamado Aleluia, Gretchen. Seria rodado em Curitiba, e Back garantiu a elas que terminaria em três fins de semana. “Só que aquilo não acabava mais. Não tinha dinheiro, não tinha contrato, nada. Ele mandava a Lilian de avião, e eu e a Kate íamos de ônibus. Até que a produção de um festival de cinema em Teerã nos convidou para participar do evento. Nós estávamos em três filmes apresentados. Fomos. O Sylvio nos processou por abandono de trabalho, e a Lilian testemunhou a favor dele. Foi muito chato.”
Casada desde 1971 com o fotógrafo Nei Spalonzi, ela diz que se apaixonou muitas vezes por personagens e atrizes, ou atores, sempre fiel a sua alma “viajante”. A experiência libertária não incluiu drogas – “a não ser maconha, na época da faculdade”. Apenas uma vez experimentou LSD, “ou pelo menos me disseram que era isso”. “Chegaram com o ácido dizendo que tinha vindo de Nova York, imagina, só que era pura metanfetamina. Tomamos antes do espetáculo (A Vida e a Época de Dave Clark, do Bob Wilson), que tinha dez horas de duração. Ficou o elenco todo pulando na coxia, que nem uns malucos, e, quando entrei em cena, levei uma hora para atravessar o palco na diagonal.” Em 1989, depois de cair em muita cilada e de enfrentar um razoável ostracismo, Selma resolveu investir na profissão de terapeuta corporal. Fez cursos breves na Bélgica e na França, e na volta viveu disso durante 20 anos. “As pessoas me diziam que era uma loucura, mas eu estava cansada de esperar que me convidassem para trabalhar.”
RENDA DE BILRO
Perto de todo o amadorismo que enfrentou no cinema, Selma é obrigada a reconhecer que a preparação de elenco que a Globo promove com os atores é algo excepcional. “Eu tenho aulas com uma fonoaudióloga que ensina a falar com o sotaque específico das famílias ricas da região ribeirinha, que é diferente do jeito de falar do jagunço. Aprendi também o que é renda de bilro [tipo de renda realizada sobre uma almofada cilíndrica], bordado, fiação de algodão.” O elemento reconciliador, por assim dizer, de Selma com a TV, é a forma alegadamente experimental com que os diretores buscam efetuar a imersão dos atores na trama. Ela conta que Luiz Fernando Carvalho dirige a novela em uma “tenda de circo” que eles chamam de “TVlier”, instalada em um canto esquecido do Projac.
Ao se sentar para conversar com J.P, no bar da piscina do hotel, Selma Egrei avisa de antemão que é “ruim para falar”. Nem! Em relação a uma “global” padrão, ela é ótima. Ao contrário de boa parte das atrizes, acostumadas a dizer sempre as mesmas coisas, ela não responde com variações de clichês estilo “amo o que faço” ou “separo muito bem a vida pessoal da profissional”. Ela fala mesmo. “Fiz muita cagada na vida profissional e na pessoal. Tem gente que não gosta de dizer que se arrepende. Eu digo.” Embora mostre desdém sobre “todo esse glamour” que envolve a vida de um ator de televisão, Selma emana uma aura de mistério que é, nela, o sintoma mais contundente de seu star quality. Mas, previsivelmente, esse seu lado etéreo guarda surpresas. Quando se diz, por exemplo, que a voz suave dela indica um temperamento tranquilo, Selma ri meio diabólica e diz: “Suave?? Eu sou um bicho! Com a idade, fiquei pior ainda. Fui virando uma megera!”.
(Fonte: http://glamurama.uol.com.br – Do lixo ao cult: a história da musa da pornochanchada Selma Egrei/ Por Paulo Sampaio para a revista J.P – 24.01.2016)