Manutius descreveu pela primeira vez o atual papel e aspecto do ponto

0
Powered by Rock Convert

Manutius descreveu pela primeira vez o atual papel e aspecto do ponto

As frases só ganharam sentido graças a uma genial invenção da metade do milênio
Minúsculo como uma partícula de poeira, um mero beijo da caneta, uma migalha no teclado, o ponto final é o legislador não-decantado do nosso sistema de escrita. Sem ele, não haveria fim para as tristezas do jovem Werther, e as viagens de Hobbit nunca teriam se acabado. Sua ausência permitiu que James Joyce tecesse Finnegans Wake em um círculo perfeito, e sua presença levou Henri Michaux a comparar a essência do nosso ser a esse ponto, “um ponto que a morte devora”. Ele coroa a conclusão do pensamento, dá a ilusão de irrefutabilidade, possui um certo orgulho de seu tamanho minúsculo, comparável ao de Napoleão. Ansiosos para continuar, não exigimos nada que assinale nossos inícios, mas precisamos saber quando parar: esse pequeno suvenir nos lembra que tudo, incluindo nós mesmos, um dia vai chegar ao fim.
Como sugeriu um anônimo professor inglês, em 1680, em seu Tratado de Paradas, Pontos ou Pausas, um ponto final é “uma nota de sentido perfeito”.
A necessidade de indicar o fim de uma frase escrita é provavelmente tão antiga quanto a própria escrita, mas a solução – breve e maravilhosa – não foi estabelecida até a Renascença italiana. Durante séculos, a pontuação fora deseperadamente irregular. No século 5, o escritor espanhol Quintilhano (que não era Henry James) argumentou que uma sentença, a expressão de uma ideia completa, deveria sair de um único fôlego e o seu final seria caso de gosto pessoal. Por um longo tempo, os escribas pontuaram seus textos com todo o tipo de sinais e símbolos – de um simples espaço em branco a uma variedade de pontos e barras. No início do século 5, São Jerônimo, tradutor da Bíblia, imaginou um sistema conhecido como per cola et commata, no qual cada unidade de sentido era assinalada por uma letra afastada da margem, como se fosse o início de um novo parágrafo.
Três séculos depois, o punctus ou ponto final foi usado para indicar tanto a pausa dentro da sentença quanto a sua conclusão. Seguindo aquelas convenções desconexas, os autores dificilmente podiam esperar que o público lesse um texto com o sentido que eles queriam que tivesse.
Então, em 1566, Aldus Manutius, conhecido como o Mais Jovem, neto do grande pintor veneziano a quem devemos a invenção do livro com capa de papel, definiu o ponto final em seu livro da pontuação, Interpungendi Ratio. Ali, em claro e inequívoco latim, Manutius descreveu pela primeira vez o atual papel e aspecto do ponto. Ele achou que estava oferecendo tão-somente um manual para tipógrafos. Não imaginava que estava dando a nós, futuros leitores, os presentes do sentido e da música para toda a literatura que ainda viria: Hemingway e seu Stacatto, Becket e seu recitativo, Proust e seu largo sustenuto. “Nenhum Ferro”, escreveu Isaac Babel, “pode se cravar no coração com tal força como um ponto final colocado no lugar certo”. Como reconhecimento do poder e da vulnerabilidade da palavra, nada nos serviu melhor do que essa partícula fiel e final.

(Fonte: Zero Hora – O melhor do milênio – O melhor fim – Cultura/The New York Times Magazine/ Por Alberto Manguel – Porto Alegre, 27 de dezembro de 1999 – Pág; 47)

Powered by Rock Convert
Share.