Artista carioca foi uma das referências de canto feminino no Brasil pela união precisa de técnica e emoção.
Elizeth Cardoso (Rio de Janeiro, 16 de julho de 1920 – Rio de Janeiro, 7 de maio de 1990), a cantora que uniu a ginga do samba à poesia. Nasceu no Rio de Janeiro, perto do Morro da Mangueira, e desde pequena cantava acompanhada pelo violão do pai. Começou a trabalhar aos 10 anos, como balconista, cabeleireira e funcionária de uma fábrica de sabão. Aos 15, entrou para o elenco da Rádio Guanabara, onde tinha como colegas Vicente Celestino, Araci de Almeida e Noel Rosa.
“O samba é a tristeza que balança”, costumava cantar Vinícius de Moraes num de seus poemas musicados por Baden Powell. É provável que, ao escrever o verso, o “poetinha” mão tivesse em mente qualquer cantor para interpretá-lo, mas ele acabou ganhando uma perfeita tradução na figura de Elizeth Cardoso, a cantora que, com sua sensibilidade aguda, penetrava na cadência do samba para extrair de seu íntimo a dor resignada da desilusão. Elizeth Cardoso “A Divina”, a intérprete extraordinária de todos os estilos da MPB, mas que aos poucos foi se especializando no repertório doído do samba-canção, como se antevisse um final de carreira que não espelhou as glórias conquistadas por seu talento ao longo da vida.
Depois de um casamento que durou apenas seis meses, aos 19 anos, com o cômico de teatro de revista Ary Valdez, o “Tatuzinho”, com quem teve um filho – mais tarde adotaria ainda uma menina -, passou a ganhar a vida como cantora e dançarina em boates. O sucesso só viria dez anos depois, com a música Canção de Amor.
No final dos anos 50, Elizeth protagonizou um momento histórico na MPB. Ela gravou o LP Canção do Amor Demais, no qual apresentava uma dupla de compositores iniciantes – Tom Jobim e Vinícius de Moraes – e se fazia acompanhar pelo violão sincopado de um músico baiano desconhecido chamado João Gilberto. Sem que nenhum dos quatro se desse conta, nascia naquele momento a bossa nova. Elizeth, que pegara o bonde da História por acaso, continuou a ser a intérprete de todos os sambas, da bossa de Noel à bossa de Jobim, sempre unindo a ginga do ritmo com a emoção que arrancava das letras. Ela deixou um punhado de interpretações memoráveis diante das quais, a partir de agora, será impossível concordar com ela ao ouvir de sua voz os versos de Chega de Saudade.
Desde 1986, Elizeth não lançava discos. Nenhuma gravadora se interessava em registrar a voz ainda impecável, repleta de nuances e de arrebatada emoção, que exibia em apresentações esporádicas. “Quando me quiserem, sabem onde me encontrar”, costumava dizer sobre o assunto, com uma ponta de humor e um travo de ressentimento. Nesse período, entrou em estúdio uma única vez – para gravar sob encomenda um LP distribuído como brinde de fim de ano por uma fábrica de móveis.
Ironicamente, desde 1988, foi a grande ovacionada do Prêmio Sharp de Música, a festa da indústria fonográfica que se realiza no Rio de Janeiro. Seus últimos anos foram conturbados também por um câncer no estômago diagnosticado em 1987 e que, já em estágio generalizado, acabaria por matá-la. Elizeth descobriu que estava doente durante uma turnê pelo Japão. Os produtores quiseram cancelar os shows, mas ela se recusou – deixou de fazer apenas duas das dezoito apresentações programadas.
“Só uma vez ouvi sair de sua boca a palavra câncer, e assim mesmo com muito pudor, apenas reclamando das dores antes de um show em 1989”, lembra o compositor e agitador cultural Hermínio Bello de Carvalho, produtor de Elizeth e um de seus amigos mais próximos.
A cantora Elizeth Cardoso morreu dia 7 de maio de 1990, aos 69 anos, de câncer no estômago, no Rio de Janeiro.
(Fonte: Veja, 16 de maio, 1990 – Edição 1130 – Datas – Pág; 69)
Cantora-mãe, Elizeth Cardoso ainda gera, louvações pela voz divina
Artista carioca – permanece como uma das referências de canto feminino no Brasil pela união precisa de técnica e emoção.
Nascida no bairro de São Francisco Xavier, perto do Morro da Mangueira, a portelense Elizeth se apaixonou pelo samba ainda jovem.
Aos 10 anos, começou a trabalhar por necessidade. Ainda na infância, conhecera o quintal da Tia Ciata, na Praça Onze, reduto do samba.
Foi também na infância que ela se aventurou no mundo da música.
“O meu tio disse: ‘Ela gosta de cantar’. Eu não me fiz de idiota, né? Cheguei lá e cantei. E aí começou tudo, né”, disse Elizeth em entrevista ao Globo Repórter em 1986.
Jacob do Bandolim estava lá, se encantou com a voz da menina de 16 anos e a indicou para um teste na Rádio Guanabara, em 1936.
Elizeth trabalhou como balconista, operária, cabeleireira, taxista e dançarina. A partir de 1950, começou a gravar discos.
“Canção de amor”, seu primeiro álbum, a colocou no rol da fama. Oito anos depois, foi convidada por Vinicius de Moraes e Tom Jobim para gravar o álbum “Canção do Amor Demais”.
Ela rompeu as barreiras entre o popular e o erudito interpretando, no Teatro Municipal, As Bachianas Número 5, de Vila Lobos.
Foram mais de 50 anos de carreira, com 46 discos gravados. Lançou artistas como Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Cantou Pixinguinha, Noel Rosa, Ataulfo Alves e gravou com vários artistas.
Foi apelidada de Divina pelo jornalista Haroldo Costa e era chamada de mãe por Chico Buarque.
“A Elizeth é basicamente uma cantora negra, suburbana, carioca, brasileira. O samba é o centro do canto da Elizeth”, explica o jornalista e crítico de música Hugo Sukman.
“Por que o Vinicius convidou a Elizeth? Porque ele se encantou por aquela voz moderna. Ela era a grande cantora moderna dos anos 50 no Brasil”, diz Sukman.
O compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho diz que ali se iniciou uma ruptura.
“Dois compositores absolutamente novos e maravilhosos que ela consagrou naquele disco canção”.
“Realmente foi o maior privilégio ter nascido nessa família, ter a minha avó como Elizeth Cardoso”, dis Paulo César Valdez Junior.
Cantora-mãe, Elizeth Cardoso ainda gera louvações pela voz divina
Existem grandes cantoras, no Brasil e no mundo, que encantam gerações sem impor um padrão a ser seguido quando saem de cena. E existem cantoras ainda maiores que se tornam mães de muitas vozes que se fazem ouvir no eco do canto referencial dessas intérpretes matriciais.
Elis Regina (1945 – 1982) foi uma dessas cantoras-mães que, curiosamente, surgiu acalentada no colo de outra cantora-mãe, Angela Maria (1929 – 2018). Gal Costa é cantora-mãe, cujo eco da voz cristalina reverbera até na geração indie projetada nos anos 2010. Marisa Monte levou no colo parte da geração de cantoras que despontaram a partir da década de 1990.
Antes de Elis, de Gal e de Marisa, houve Elizete Moreira Cardoso (16 de julho de 1920 – 7 de maio de 1990), contemporânea de Angela e de Dalva de Oliveira (1917 – 1972).
Elizete Cardoso (como ela assinou em discos editados na primeira metade dos anos 1960) ou Elizeth Cardoso (como ficou para a posteridade o nome artístico dessa cantora carioca) está sendo lembrada no centenário de nascimento – festejado nesta quinta-feira, 16 de julho de 2020 – por proezas feitas ao longo de trajetória iniciada em 1936 e terminada em 1990 quando câncer de estômago calou, aos 70 anos de vida e 54 anos de carreira, essa voz de contralto surgida e projetada na era do rádio.
Entre outros feitos memoráveis, Elizeth ajudou a consolidar compositores dessa era radiofônica, gravou discos históricos – como Canção do amor demais (1958), álbum equivocadamente caracterizado como de bossa nova por ter apresentado a batida do violão de João Gilberto (1931 – 2019) – e contribuiu para a revitalização do choro nos anos 1960 em show e disco com Jacob do Bandolim (1918 – 1969), descobridor e avalista da cantora nos anos 1930.
Contudo, a maior proeza de Elizeth Cardoso foi a de ter magnetizado público, cantores e músicos com canto de tom tradicional, pautado pelo rigor estilístico da intérprete e incrementado com vibratos e ênfases nos erres.
Elizeth marcou época pela versatilidade do canto que tanto podia soar faceiro em sambas como os de Ary Barroso (1903 – 1964) – compositor recorrente na discografia da Divina – como atingir densas regiões emocionais como as das canções do amor demais de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1990) e Vinicius de Moraes (1913 – 1980).
Seja subindo o morro para cantar compositores ligados ao samba, seja escalando as notas da Bachianas nº 5 de Villa-Lobos (1887 – 1959), Elizeth Cardoso nunca saiu do tom. Tampouco fazia questão de soar moderna e de se atualizar com as novidades da música brasileira, embora Elizeth sempre tenha avalizado jovens compositores com a discrição que a caracterizava.
Nascida para cantar, ofício para o qual pareceu já ter vindo pronta, Elizeth Cardoso sabia conjugar técnica e emoção sem que uma anulasse a outra, sem que a cantora carregasse no drama – qualidade evidenciada logo no primeiro sucesso do primeiro disco, Canção de amor (Chocolate e Elano de Paula, 1950).
Aliás, é curioso notar que Elizeth Cardoso nunca foi cantora de hits. Há, sim, músicas associadas ao canto da artista, casos do samba Barracão (Luís Antonio e Oldemar Magalhães, 1953) e do choro Doce de coco (Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, 1968).
Ainda assim, o que prevaleceu, na carreira de Elizeth Cardoso, foi o conjunto da obra eternizada pela cantora com a privilegiada voz de contralto que roçava o registro de mezzo-soprano e que limpava impurezas das músicas – como sensivelmente observou Joyce Moreno quando, ignorando preconceitos sociais, compôs Faxineira das canções (1986) para celebrar o canto da Magnífica, um dos epítetos atribuídos a Elizeth pelo brilhantismo do canto.
Pouco ouvido na década de 1980, esse canto deu voz à parte expressiva da história da música popular do Brasil em obra perene.
Ainda envolvida em luz e esplendor, a centenária Elizete Moreira Cardoso conserva em 2020 a mesma idade que tinha em 1950 ou em 1990, permanecendo como uma das referências mais sólidas de canto feminino no Brasil. É a idade das eternas cantoras-mães cujas vozes e obras ecoam nos cantos das muitas filhas que deixaram espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.
(Fonte: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/07/16 – POP & ARTE / MÚSICA / Por Mauro Ferreira – 16/07/2020)
Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em ‘O Globo’ e ‘Bizz’. Faz um guia para todas as tribos