Primeiro desenho animado do Brasil

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Primeiro desenho animado do país, ‘Kaiser’

Curta-metragem criado pelo artista Seth não deixou cópia, mas foi recriado em um documentário

 

Pioneiro. Em “Kaiser”, o imperador Guilherme II, sentado, interage com um globo terrestre: imagem (à esquerda na foto) foi resgatada no documentário “Luz, anima, ação” (2013), de Eduardo Calvet, sobre a história da animação no Brasil - (Foto: Divulgação)

Pioneiro. Em “Kaiser”, o imperador Guilherme II, sentado, interage com um globo terrestre: imagem (à esquerda na foto) foi resgatada no documentário “Luz, anima, ação” (2013), de Eduardo Calvet, sobre a história da animação no Brasil – (Foto: Divulgação)

 

Considerado pelos historiadores o primeiro desenho animado brasileiro, o curta-metragem “Kaiser” estreou no dia 22 de janeiro de 1917, no Cine Pathé, que ficava na Cinelândia. Produzido pelo empresário e político Sampaio Corrêa, o filme era, na verdade, uma charge animada de autoria do cartunista Seth, pseudônimo de Álvaro Marins (1891-1949).

“Kaiser”, do qual não sobrou qualquer cópia física, apenas uma imagem de referência, fazia uma crítica bem-humorada e sarcástica ao expansionismo alemão em meio às tensões da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O filme mostrava o imperador Guilherme II sentado diante de um globo terrestre. Para mostrar que controla o mundo, ele coloca seu capacete militar na “cabeça do globo”. Mas o objeto ganha vida, vira o jogo e acaba engolindo o soberano.

Na época da exibição do curta, o Brasil ainda resistia a entrar no conflito. Meses depois, quando navios brasileiros foram torpedeados por submarinos alemães, o governo decidiu declarar guerra à Tríplice Aliança, formada pelos impérios Alemão e Áustro-Húngaro e pelo Reino de Itália.

Seth, que nasceu em Macaé e foi viver no Rio ainda muito jovem, era conhecido por seus cartuns — em geral, crônicas de costumes — para o jornal “A Noite”. Também fazia ilustrações bem-humoradas para anúncios como os da famosa Casa Mathias, estrelados pelo português que lhe dava nome e pela personagem Mulata Virgulina.

Antes do curta de Seth, a animação no país se resumia a charges animadas de curtíssima duração que funcionavam como vinhetas dos cinejornais exibidos no início de filmes. O cartunista Raul Pederneiras era um dos artistas mais ativos nessa área, tendo contribuído para o Pathé-Jornal, produzido pela empresa Marc Ferrez & Filhos, dona do Cine Pathé, e também para os cinejornais feitos pelos irmãos Alberto e Paulino Botelho.

— Na verdade, as primeiras experiências em animação no Brasil datam de 1908. Mas o que tem de significativo no “Kaiser” é o trabalho do Seth, que foi concebido de forma completa e sistemática, em cima de uma narrativa com começo, meio e fim. Além disso, o curta faz um comentário sobre um assunto do contexto da época, que é a participação alemã na Primeira Guerra Mundial. E também usa uma técnica complexa — diz Hernani Heffner, conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM).

Em 2013, o documentário “Luz, anima, ação”, de Eduardo Calvet, recriou “Kaiser”, com a colaboração de oito animadores. Usando diferentes técnicas, Marão (2D tradicional), Zé Brandão (2D digital), Stil (animação em papel sulfite), Pedro Iuá (massinha), Marcos Magalhães (animação na película), Diego Akel (pixilation), Fábio Yamaji (light painting) e Rosana Urbes (metalinguagem 2D) animaram trechos do curta usando referências achadas em periódicos do início do século XX.

— Fizemos uma pesquisa extensa para tentar descobrir vestígios do filme original, fomos a todas as cinematecas, mas não encontramos nada. Tentamos achar a família e só conseguimos encontrar um herdeiro que não tinha muita informação sobre o filme. Tínhamos uma imagem de referência que mostra o Kaiser sentado na frente de um globo coberto com um capacete militar e periódicos com relatos da época. Por isso, resolvemos fazer uma homenagem recriando o curta com a participação de vários artistas — explica Calvet.

Yamaji, um dos participantes da homenagem ao curta em “Luz, anima, ação”, diz que Seth, na primeira metade do século, identificava problemas que se tornariam crônicos na animações no Brasil:

— Ele antecipou um problema que perdura até hoje, embora a gente tenha evoluído bastante. Falava que, para manter a qualidade nas produções, era necessário financiamento. E já reclamava da falta de material adequado para se trabalhar — diz o animador paulista.

Nos anos 1930, em entrevista à revista “Cinearte”, Seth disse que, depois do curta, passou a se dedicar à publicidade, onde havia mais recursos para produzir animação: “Depois dessa tentativa, só cuidei de fazer reclames. Fiz vários e passei-os no Odeon, num jornal cinematográfico semanal criado por Elisiario da Silva”.

Um século depois, o Brasil produz animações como “Uma história de amor e fúria” e “O menino e o mundo”. A primeira, dirigida pelo roteirista Luiz Bolognesi, ganhou o Festival de Annecy de 2013, um dos mais importantes dedicados ao formato. A segunda, de Alê Abreu, ganhou o mesmo prêmio francês no ano seguinte, além de ter conseguido uma indicação ao Oscar de melhor longa em animação em 2016.

 

— Hoje, a animação brasileira pode ser considerada um nicho de resistência, sem apoio, sem investimento, sem universidade, sem escola, sem nada — diz Bolognesi. — Somos uns poucos loucos que insistem em fazer animação. Mas existimos no mercado mundial e somos vistos como um território de animação autoral. Esse é o melhor lugar onde poderíamos estar. Isso é autonomia, expressão.

Para Hernani Heffner, porém, a perspectiva para o formato parece promissora, se os incentivos se mantiverem:

— Nos últimos 20 anos, o cinema de animação, para o qual sempre demonstramos uma vocação, se ampliou muito no Brasil. Entre vários fatores, a criação de editais específicos para o formato ajudou muito a incentivar a produção brasileira. E o coroamento disso está na indicação do longa “O menino e o mundo” para o Oscar.

(Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/filmes – SÃO PAULO — CULTURA – FILMES/ POR ALESSANDRO GIANNINI – 22/01/2017)

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