Antonio Carlos de Brito, poeta e letrista mineiro, ou Cacaso, como se assinava e preferia ser chamado. Um artista de versos rápidos e precisos, de um poeta que escreveu toda coisa que vive é um relâmpago e, há apenas dois anos, na última linha de uma autobiografia sumária, disse que gostaria de assistir à passagem do século.
Cacaso deixou, como coisas vivas, sete livros de poesia e cerca de 200 letras para canções de música popular. Foi com as letras de música que o poeta chegou ao grande público na voz de Simone em Face a Face:
São as trapaças da sorte
São as graças da paixão
pra se combinar comigo
tem que ter opinião
ou na de Fafá de Belém em Dentro de mim Mora um Anjo:
Quem me vê assim
[cantando
não sabe nada de mim
dentro de mim mora um
[anjo
Essas duas canções, trabalhadas em parceria com Sueli Costa, fizeram e fazem ainda um enorme sucesso. Mas é na poesia de Cacaso, principalmente naquelas que fez nos anos 70, que está o melhor de sua obra.
VIVO NO EXÍLIO É nas poesias daquela época que Cacaso misturando procedimentos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade a uma percepção original – fez um retrato possível dos sentimentos vigentes num país imenso na ditadura. Em Jogos Florais, Reflexo Condicionado e O Futuro Já Chegou há o milagre econômico brasileiro virando vinagre, a brutalidade do produto interno bruto e o desespero suicida de quem se sentiu emparedado, sem saída, pelo sem-sentido daqueles anos. São poemas contundentemente políticos mas, também, pessoais, intransferíveis. Poesia política de lirismo discreto, sem nenhum pendor mobilizador, sem se pretender canto arrebatador ou denúncia sisuda de mazelas ditatoriais. Foi através do humor, das inversões de sentido à La Oswald de Andrade, que Cacaso obteve seus melhores resultados nessa fase. Nela, a política estava em maior evidência – mas em nenhum momento deixou de fundar-se na individualidade de Cacaso, na sua nostalgia de situações perdidas e passadas e no seu estranhamento com o presente. Como no curto e direto Lar Doce Lar:
minha pátria é minha infância:
por isso vivo no exílio
Nascido em Uberaba, Cacaso, filho de fazendeiros, passou a infância no interior de São Paulo e aos 11 anos mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu desde então. Adaptou-se muito bem à cidade, mas nunca deixou de ser um pouco exilado. Como o pernambucano Manuel Bandeira, que também adotou o Rio como sua cidade, Cacaso não era um exilado no sentido político ou geográfico. Como Bandeira sua maior influência na poesia -, o artista via a meninice com os olhos de um menino. E via no cotidiano, nos dados corriqueiros do presente, a matéria-prima de sua poética. Até na aparência Cacaso exprimia seu desajeitamento com o passar do tempo. Desde sempre, e muito antes que o ator americano Mickey Rourke lançasse a moda, lá estava Cacaso com a barba eternamente por fazer. O movimento hippie chegou e passou, e o poeta continuou de cabelos compridos. John Lennon morreu, e Cacalo continuou firme com seus óculos de aro redondo.
IMPASSES Com seu ar de matuto mineiro, de um artista para sempre fincado nos anos 60, autor de uma poesia perfeitamente compreensível à primeira vista, nem por isso Cacaso era um ingênuo. Fez curso de Filosofia, foi professor de Teoria Literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ensaísta, crítico, conhecia estética a fundo e sabia música. Mas, principalmente, soube encontrar no panorama da cultura brasileira um caminho para a poesia, uma trilha que, ao mesmo tempo, proporcionasse uma saída para os impasses literários e através da qual ele pudesse se expressar. Esse foi um aprendizado que fez junto com alguns poucos poetas da sua geração e que teve início sem maiores reflexões tinha pouco mais de 20 anos, ainda era estudante, e tímido, quando levou um punhado de poemas para que um professor seu desse uma opinião. O professor não só gostou do que leu como recomendou que o aluno publicasse os versos e terminou por prefaciar o livro. O professor era José Guilherme Merquior, futuramente imortal da Academia Brasileira de Letras e embaixador do Brasil no México, e o livro de estreia de Cacaso levou o nome de A Palavra Cerzida, tendo sido publicado em 1967.
A partir daí, Cacaso, com seu jeito afável, sem grandes hostilidades, forçou uma revisão na poesia brasileira. Nos anos 70, Drummond e João Cabral de Melo Neto desenvolviam suas obras sem influenciar diretamente os poetas jovens que surgiam. A poesia concreta também se desdobrava, mas não arrastava muitos seguidores. E a poesia política diretamente participante não encontrava saída, devido ao arrocho da Censura. Foi então que Cacaso, alheio aos grupos literários, serviu como uma espécie de catalisador e dínamo para toda uma geração de poetas aqueles que foram agrupados pelos rótulos de geração mimeógrafo, poetas marginais ou alternativos. Dentro dessa tendência poética que não chegou a configurar-se em movimento, com manifestos e plataformas literárias houve lugar para Ana Cristina César, Francisco Alvin, Chacal, Charles e Bernardo Vilhena. São poetas bastante diferentes, mas que, num período dos anos 70, encontraram uma série de afinidades: a produção artesanal de seus livros, o retorno ao coloquialismo modernista, o gosto pelo humor, as marcas da confusão dos anos 60 e uma tentativa de aproximar a poesia do cotidiano, da vida.
INDEPENDÊNCIA A poesia brasileira, então, passou por um rejuvenescimento, por um florescer que deve muito a Cacalo tanto pelo seu papel de articulador como, principalmente, pela alta qualidade dos seus versos. Como articulador, discutiu muito, propagandeou suas ideias pela imprensa e na universidade e, em 1974, lançou a Coleção Frenesi, dedicada àquele tipo de poesia. Como poeta, publicou nos anos 70 os seus melhores livros: Grupo Escolar, Beijo na Boca, Segunda Classe e Na Corda Bamba. Cacaso já era poeta antes do movimento alternativo, diz a historiadora e crítica literária Heloísa Buarque de Holanda, uma das primeiras a teorizar e a apoiar a tendência rejuvenescedora da poesia. Mas como um dos seus traços principais era a independência sentiu-se atraído pelos alternativos e deu consistência a eles.
Houve, é óbvio, toneladas de versos ruins, de piadas infames disfarçadas de poesia e de banalidades atrozes perpetradas por alternativos e marginais da geração do mimeógrafo. Tanto que, dos poetas surgidos na ocasião, muitos deixaram de poetar para benefício da poesia brasileira. Muitos daqueles poemas, por fim, só se lêem hoje por curiosidade histórica, sem qualquer deleite estético. Mas não as poesias de Cacaso. Nelas, a ironia continua a pulsar, o momento político em que foram escritas não pesa sobre suas poesias como uma muralha intransponível a dificultar a leitura. A poesia de Cacaso é datada tão somente no sentido de que toda a arte mantém pontos de contato com a realidade imediata que a cerca. Em O uqe é o que é, por exemplo, há uma alfinetada, à maneira da estética dos Centros Populares de Cultura, os CPCs, no Brasil dependente de potências estrangeiras ao longo da História. Mas há também no poema o sentimento, tão próprio dos brasileiros, de se sentir “desterrados em nossa terra”, como disse há cinquenta anos Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
Cacaso também fez música desde muito jovem. Começou a fazer letras junto com poesia, mas só depois da explosão da poesia, alternativa passou a se dedicar profissionalmente, a viver dos direitos autorais das canções que compunha. Passou, também, a colocar poesia e canção num mesmo nível – a ponto de publicar suas letras no livro Mar de Mineiro. Com isso, suas letras de canções não melhoraram – já que não há sentido em ler uma canção, e sim em escutá-la – e sua poesia saiu perdendo. E isso talvez porque Cacaso, nos anos da ditadura, tenha achado uma situação que lhe era mais propícia à expressão poética. Na Nova República, fez coisas fracas como Presidente, uma boba homenagem a Tancredo/Tancredinho/Tancredão.
Cacaso, andava cheio de planos e trabalhava com afinco. A procura, a insatisfação com as receitas prontas, a inquietação eram características marcantes do poeta. Pretendia fazer com o parceiro Francis Hime um musical infantil, A Patuscada. Preparava um roteiro, em forma de cordel, sobre Antônio Conselheiro e a saga de Canudos. Estudava o tema há sete anos e já havia enchido cadernos com desenhos coloridos do Conselheiro, paisagens nordestinas e versos. Planejava escrever um livro sobre música popular brasileira, andava fazendo contos e, ainda, tencionava reunir seus poemas inéditos num volume.
INJUSTIÇA Com uma obra bonita, alegre e em plena atividade Cacaso morreu subitamente. Na surdina, na claridade de um domingo, dia 27 de dezembro, 1987, em Copacabana, no tempo lento que separa o Natal do Ano-Novo a morte se abateu silenciosa sobre o poeta mineiro. Aos 43 anos, o poeta e letrista tombou sozinho, no escritório de seu apartamento no Rio de Janeiro, fulminado pela lâmina precisa de um infarto. Era a morte rápida de um artista de versos rápidos e precisos. Toda a morte é injusta. Mas a de Cacaso teve uma injustiça a mais: o silêncio quase que total que a cercou. Foram realmente poucos, fora os amigos, que voltaram aos seus poemas em busca de iluminações, deleite e conforto. Mais uma vez, o Brasil das letras mostrou sua face feia. O mesmo rosto do silêncio que se mostrou quando da morte de Mário Faustino. A face que, ao se suicidarem os poetas Torquato Neto e Ana Cristina César, fez com que poucos celebrassem as suas obras. Depois, anos depois, Faustino, Torquato e Ana Cristina foram “redescobertos” em antologias ou livros inéditos. “O Brasil das letras não ama os poetas vivos. Prefere-os mortos, objetos de estudo. Não é preciso esperar uma antologia ou versos inéditos para usufruir a grandeza e a dignidade da poesia de Cacaso. Basta ir aos seus livros para perceber que, nos seus versos vivos, o Brasil perdeu um grande poeta. Cacaso morreu dia 27 dezembro, 1987, aos 43 anos, de infarto, no Rio de Janeiro.
(Fonte: Veja, 6 de janeiro, 1988 Edição N° 1009 DATAS CULTURA – Pág; 54/55/56 e 59)