Raul Hestnes Ferreira, arquiteto português, responsável por múltiplos edifícios emblemáticos da cidade de Lisboa

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Arquiteto Raúl Hestnes Ferreira era filho do escritor José Gomes Ferreira, Prêmio Valmor em 2002

Raul José Hestnes Ferreira (Lisboa, 24 de novembro de 1931 – Lisboa, 11 de fevereiro de 2018), arquiteto português, responsável por múltiplos edifícios emblemáticos da cidade de Lisboa.

Nascido em novembro de 1931 numa família ligada ao ativismo político, filho do escritor José Gomes Ferreira, pai do ator Pedro Hestnes (1962-2011) e da pintora Sílvia Hestnes Ferreira, viveu desde sempre em círculos políticos e culturais prolíferos. Durante a infância, esse ambiente seria fortemente caracterizado pela corrente neo-realista portuguesa. Foi preso político durante a ditadura salazarista e militante antifascista. Diplomou-se em Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa no início da década de 1960.

Hestnes pertenceu à primeira geração que não participou ativamente no I Congresso Nacional de Arquitetura de 1948. Escapou por isso da esfera da arquitetura moderna dos velhos mestres portugueses. Foi a sua geração que sobrepôs à cultura pragmática anterior uma nova linhagem culturalista, e esse é um dos seus grandes legados. O que significava procurar novas experiências acadêmicas e culturais. Emigrou cedo. Escolheu os países nórdicos (tinha ascendência norueguesa através da sua mãe, Ingrid Hestnes), principalmente a Finlândia, ainda sob forte influência de Alvar Aalto, e os Estados Unidos da América, onde encontrou Louis Kanh, professor de Arquitetura na Universidade da Pensilvânia. Na América desembarcou já arquitecto.

A América dos anos 1960 significava um afastamento do eixo da Europa do Sul, culturas mais habituais para os portugueses, mas principalmente uma vontade em tocar geografias menos domésticas e mais internacionais. Nisso, Hestnes seria seguido por Manuel Vicente. A experiência americana iria posicioná-los criticamente em relação à arquitetura moderna. E se Vicente não escapou à atração do “Império”, trabalhando em Macau, Hestnes encontrou em Portugal o seu espaço de liberdade criativa, e na zona sul do país, a sua geografia eletiva.

Cumprindo percursos muito distintos, juntos haveriam de produzir uma viragem na arquitetura portuguesa, principalmente na que se praticava na capital, abrindo um vislumbre de pós-modernidade no cerne de uma cultura moderna “empedernida”, a meio da década de 1960. Tanto Hestnes como Vicente acabariam por pagar caro este afronto à cultura moderna. Muito valorizada pela historiografia que se começou a fazer nos anos 90 do século passado, essa produção moderna realizada em torno do Congresso, e revista pelo famoso inquérito à arquitetura regional (1955-1961), acabaria por encobrir tudo o que se seguiu, num anátema que agora começa a ser progressivamente desatado.

Quando chegou da América, Hestnes revelaria um pouco a lição de Kahn, ao desenhar as duas casas geminadas de Queijas (1968). O reportório que o velho mestre americano — nascido em 1901 na Estônia, e na América desde os cinco anos — teria passado ao jovem Hestnes compunha-se de uma forte formação em Arquitetura da Antiguidade Clássica e Medieval — que Kahn gostava de desenhar — e em palestras sobre materiais ou sobre luz.

O mestre Kahn “amava os inícios”, a geometria e a natureza. Hestnes procuraria numa primeira fase incorporar algumas menções à sua obra, quer através do recurso ao tijolo quer através das formas puras e volumes sóbrios. As duas casas geminadas de Queijas traziam essa novidade em relação à residência que desenhara oito anos antes para o pai, em Albarraque. Esta era ainda uma “casa da arquitetura portuguesa”, no sentido que refletia as preocupações que emanavam no inquérito à arquitetura popular e provavelmente das próprias vivências neo-realistas que partilhara em ambiente familiar. Também por isso, esta primeira obra — realizada antes da aventura americana — tem sido sucessivamente apontada como um dos seu mais significativos contributos para a cultura portuguesa.

Apesar da beleza e do engenho da casa de Albarraque, edifícios como os que começaria a projetar para cidades alentejanas como Beja, já no rescaldo da revolução de Abril de 1974 (portanto mais aliviado da sua jornada política antifascista), mostrariam um arquiteto mais maduro nas opções estéticas e construtivas, e mais consciente do papel cultural do arquiteto (em oposição ao papel mais técnico encarnado pela geração anterior).

Em Beja, a Casa da Juventude (1976), cuja cobertura ostenta ainda hoje as abóbadas realizadas pelos últimos construtores de adobe da região, revelaria o compromisso possível entre Kahn e a cultura popular portuguesa.

O traçado mediterrânico do Sul de Portugal — autorizado pela literatura que Hestnes conhecia bem e descrito pelo geógrafo Orlando Ribeiro em prosa quase neo-realista — prestava-se a esse cruzamento. O edifício permanece lá, numa notável ordem clássica, inata à cultura ocidental. Esta seria provavelmente a cultura que Kahn teria incentivado Hestnes a amar e a reproduzir.

O arquiteto era menos um solucionador de problemas e mais um fazedor de cultura. Próximo em data e sensibilidade, é na Unidade Habitacional João Barbeiro, do ano seguinte à Casa da Juventude, que a presença de Kahn se complementa com os elementos da cultura local, que as grelhagens cerâmicas evidenciavam. Nos anos 1980, Hestnes regressaria a esta cidade com o Bairro da Cooperativa “Lar para Todos”, integrando outros imaginários da história da arquitetura moderna europeia.

 

A proximidade entre alguns dos aspectos formais da arquitetura de Hestnes e os princípios que descrevem a obra de Kahn têm levado muitas das análises sobre o arquitecto português a categorizá-lo como “kahniano”. É certo que a epígrafe seria justa, na medida em que Hestnes seguiu de perto algumas das pistas lançadas pelo americano, designadamente na definição de volumes puros, combinação de geometrias modulares, adequação dos materiais aos processos construtivos e desenho, manipulação da luz natural, recurso ao contraste claro/escuro.

Estas pistas estavam presentes em obras com funcionalidades tão distintas como a habitação (Novo Bairro Fonsecas e Calçada, Lisboa, 1977, decorrente de uma Operação SAAL — Serviço Ambulatório de Apoio Local), ou a educação (Escola Secundária José Gomes Ferreira, Benfica, Lisboa, 1978), por exemplo. Fazendo recurso ao vocabulário kahniano, Hestnes trazia para a cultura portuguesa a hipótese da monumentalidade, uma nova abordagem à cultura clássica que a arquitetura portuguesa abarcava com esforço. Havia, portanto, no seu desenho uma forte inclinação para a exploração de escalas monumentais a que a cultura pós-moderna não era estranha, mas que em Hestnes ganhavam uma domesticidade mais amena.

Hestnes haveria ainda de ser o autor de um dos mais impressionantes campus universitários portugueses, o do ISCTE — Instituto Universitário em Lisboa. Uma visita ao conjunto formado por quatro edifícios é talvez a melhor homenagem que se pode fazer. O percurso permite acompanhar a evolução do seu pensamento arquitetônico e o modo como, a dada altura, se liberta de Kahn sem deixar de manifestar a sua familiaridade. O primeiro núcleo — ainda de 1975 — datava da fundação do instituto e tratava-se de refazer em escala menor a sociabilidade que tinha encontrado nas universidades americanas, mas também — e curiosamente — na Finlândia, para onde Aalto trouxera o modelo. Seguiu-se ao longo dos anos 1990 a Ala Autônoma, o INDEG e o último edifício (geminado com o ICS — Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa).

A cada novo edifício, Hestnes foi introduzindo complexidades espaciais e novas solicitações sensoriais. A multiplicidade de soluções revelaria as diferentes competências que a arquitetura possui na construção de um espaço público. Os edifícios refletiam um desenho sofisticado e cerebral, provando que para Hestnes a inteligência e a cultura do utilizador nunca seriam traço a desprezar, bem pelo contrário. O arquitecto deve ter sentido a mesma ambição de Jonas Salk ao encomendar a Kahn o seu famoso Instituto de Estudos Biológicos, na Califórnia: conceber um lugar de encontro de mentes brilhantes. Com esta operação — um pouco orgânica como é da tradição portuguesa —, Hestnes conseguiu dar uma morada a uma instituição (à época com pouca tradição) através de uma forte identidade arquitetônica.  Apesar de maltratada nas suas últimas gestões do ISCTE, a arquitetura tem conseguido resistir.

A sobrevivência cultural da geração a que Hestnes pertenceu revelou-se muito difícil após os anos 1990. Tal como aconteceu com outros arquitetos — caso óbvio de Manuel Vicente —, o ensino da arquitetura foi sentido como uma vocação e uma das formas prováveis para continuar a dialogar. Durante 14 anos — até à idade de reforma —, Hestnes integrou o Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra, deixando uma marca muito forte na Escola e nos antigos alunos. Devolvia assim parte do legado de Kahn, mas agora já cruzado com a cultura meridional de Portugal. Hestnes morreu a 11 de fevereiro, deixando claro que a sua passagem pela arquitetura portuguesa acabaria por gerar uma revolução tudo menos silenciosa. E a arquitetura portuguesa ganhou um traço culturalista sem constrangimentos, sem culpa.

Raúl Hestnes Ferreira morreu em 11 de fevereiro de 2018, em Lisboa, aos 86 anos.

(Fonte: https://www.publico.pt/2018/02/12/culturaipsilon/noticia – CULTURA ÍPSILON /Por ANA VAZ MILHEIRO – 12 de Fevereiro de 2018)

 

 

 

 

Filho do escritor José Gomes Ferreira, formado na Escolas de Belas-Artes, em Lisboa (mas com passagens pelo Instituto de Tecnologia de Helsínquia, pela Universidade de Yale e pela Universidade da Pensilvânia), Raul Hestnes Ferreira desenvolveu muitas das suas obras na capital, tendo projetado por exemplo a biblioteca de Marvila, o novo edifício do ISCTE — IUL (Instituto Universitário de Lisboa), a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e a Escola Secundária de Benfica, nomeada Escola Secundária José Gomes Ferreira em homenagem ao seu pai.

Além dos projetos na capital, o arquiteto, que venceu o prestigiado Prêmio Municipal Valmor em 2002 pelo seu contributo arquitetônico para a cidade, desenhou ainda espaços como a Casa da Cultura e da Juventude de Beja. Esteve também envolvido na remodelação e recuperação do Café Martinho da Arcada, em Lisboa, e do Museu de Évora. Em 2007 recebeu o doutoramento Honoris Causa pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

Além do importante Prémio Valmor, o arquiteto nascido em Lisboa — também professor universitário, lecionando na Universidade de Coimbra, no ISCTE, na Cooperativa de Artes Artísticas Árvore (Porto) e na Escola de Belas-Artes, onde se formou — venceu ainda o Prémio Nacional de Arquitectura e Urbanismo da AICA (1982) e o Prémio Nacional de Arquitectura da A.A.P., em 1993.

Em 2016 foi homenageado pela Universidade Lusófona, com uma exposição que revisitava as maquetes de algumas das suas obras mais marcantes e apresentava fotografias (de Luís Pavão) e uma curta-metragem (intitulada “A Encomenda” e realizada por Manuel Graça Dias) que tinha o arquiteto como protagonista. “A Encomenda” havia sido filmada na Casa de Albarraque, em Rio de Mouro, Sintra, que fora projetada em 1960 por Raúl Hestnes para alojar o seu pai (foi, aliás, a sua primeira grande obra).

Em entrevista, Raúl Hestnes Ferreira falava assim da sua decisão de enveredar pela arquitetura:

Eu também gostava muito de escrever, mas fui também muito influenciado pela personalidade do arquiteto Keil do Amaral. O meu pai convivia muito com artistas plásticos – sei lá…Manuel Ribeiro de Pavia, a pintora Maria Keil,… – e os meus padrinhos foram Bernardo Marques (desenhador) e Ofélia Marques (uma grande pintora, também). Eu fui criado nas artes, e gostava muito de desenhar. Aos 15, 16 anos, naquelas opções da escola, acabei por enveredar pela arquitectura, e não estou nada arrependido, de facto.

O ministro da Cultura, Luís Filipe de Castro Mendes, manifestou “profundo pesar” pela morte do arquiteto, “autor de vasta obra pública e privada”. Numa nota enviada à comunicação social, o ministro da Cultura recorda que Raúl Hestnes Ferreira foi um arquiteto multipremiado e que a ele se deve a remodelação e valorização do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora.

“Vencedor de vários prémios, entre eles o Prémio Valmor, em 2002, Raúl Hestnes Ferreira trabalhou em Filadélfia com Louis Kahn, nome fundamental da arquitetura do Séc. XX, assim como acompanhou, através da sua atividade académica, exercida em diferentes universidades, a formação de várias gerações de arquitetos portugueses”, sublinhou.

O ex-ministro da Cultura João Soares manifestou também pesar pela morte de Raúl Hestnes Ferreira, chamando-lhe “um homem digno” e “um bom arquiteto”.

(Fonte: http://observador.pt/2018/02/12 – CULTURA – ARQUITETURA / Gonçalo  Correia – 12/2/2018)

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