“Não tenhamos ilusões. Daqui a alguns anos só se lembrarão de um terrível chefe de polícia do tempo da Onça, que aliás, também foi chefe de polícia.” Filinto Müller (1900-1973), senador mato-grossense, presidente do Senado Federal e da Arena

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Filinto Müller (1900-1973), senador mato-grossense, presidente do Senado Federal e da Arena.

Filinto Müller (1900-1973), senador mato-grossense, presidente do Senado Federal e da Arena. Filinto Müller já sabia: Não tenhamos ilusões. Daqui a alguns anos só se lembrarão de um terrível chefe de polícia do tempo da Onça, que aliás, também foi chefe de polícia. Pouco mais de um ano dessa previsão, o avião da Varig em que viajava em companhia da esposa e do neto, incendiou-se nos arredores de Paris, onde deveria desembarcar, comemorando seu 73.° aniversário.

Morreram vários Filinto Müller. Havia o revolucionário de 1930, o político mato-grossense, o cardeal do Partido Social Democrático, o líder do governo no Senado, o presidente do Congresso e o presidente da Arena. Estes foram com três dias de luto oficial, palavras do governo e de respeito da oposição. Mas, acima de todos, para muitos brasileiros, ergueu-se a sombra do chefe de polícia do Estado Novo. Realmente, não era o caso de serem feitas ilusões, pois trinta anos depois de ter deixado o prédio da rua da Relação, onde, de 1932 a 1942, seu nome foi relacionado com torturas contra comunistas, integralistas e suspeitos, ele mesmo reconhecia que não tinha conseguido cancelar a obrigação de carregar o peso de acusações que não cometi.

Sem defesa – Mesmo assim, carregou a dignidade possível seu pesado fardo e, em fevereiro de 1972, depois de doze horas de entrevistas concedidas, só uma informação ele não permitiu que fosse publicada: a de que a decisão de entregar às autoridades alemãs a mulher de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista, fora tomada numa reunião ministerial presidida por Getúlio Vargas na qual tivera – e usara – seu direito de voz, sem ter, contudo, voto. Recusava-se a apresentar qualquer argumento em sua defesa. De qualquer forma, mesmo sendo lógica, a lembrança exclusiva do chefe de polícia não é justa, pois atira nas masmorras de ressentimentos compreensíveis trinta anos de atividades de um dos grandes políticos brasileiros da atualidade.

Müller nunca foi um carismático. Era um bom orador, mas só o cochicho o fazia incomparável. Não inspirava confiança a partir de um programa de atuação definido, mas valendo-se de compromissos menos ostensivos, sempre cumpridos. Sua própria correspondência mostra que não tinha correligionários. Trabalhava sobretudo com “amigos”. A esses, num hotel em Mato Grosso, ou em seu gabinete de presidente do Senado, “atendia”. Não acreditava nas grandes divisões ideológicas da política brasileira: “A raiz de tudo está no município. Em muitos Estados, as rivalidades são as mesmas do Império. São ligeiras desatenções e velhas hostilidades as que dividem os partidos”.

O bom palanque – Essa visão capilar permitiu-lhe ressurgir do Estado Novo, subir ao poder com o PSD, baixar aos infernos com sua extinção, em 1967, e novamente sentar-se à direita do todo poderoso depois de 1968, quando assumiu pela primeira vez a presidência da Arena, um partido em que, de início, não confiava e que, quando morreu, deixou irreversivelmente estruturado.

Sua passagem pela presidência da Arena, onde foi entronizado em março de 1972, coincide com uma das épocas de mais escasso prestígio para os políticos. Nela, enquanto colava os cacos dos velhos partidos, arriscava eventuais declarações de longo alcance. Chegou a defender a devolução à magistratura “de seus predicamentos”. Ou seja, abrir uma brecha no AI-5 devolvendo a vitaliciedade e a inamovibilidade aos juízes. Dias depois, teve de desmentir-se e, paradoxalmente, não foram poucos os defensores da redemocratização que mostraram sinais de felicidade diante da derrota do velho senador. Afinal de contas, ele era o chefe de polícia do tempo do Onça. Há alguns meses, invertendo delicadamente sua posição, anunciou – sem as devidas credenciais – a morte do liberalismo. E novamente recebeu os dardos que por justiça cabiam ao chefe de polícia.

Mas, enquanto era condenado a atuar nos subterrâneos atapetados do poder, onde se tornou artista admirável, tecia a malha onde haveriam de se apoiar seus adversários. Indo e vindo do Congresso ao Palácio do Planalto, conseguiu restabelecer comunicações eficientes ainda que débeis entre o Executivo e o Legislativo. E o maior teste de seu trabalho pode ser visto em março de 1973, quando, numa atitude de nítida rebeldia, o deputado José Bonifácio de Andrada resolveu disputar, contra a chapa oficial da Arena, o lugar de primeiro vice-presidente da Câmara e obteve 120 surpreendentes votos. Andrada conseguira desafiar Müller no palanque que o senador construíra e, enquanto trombeteava sua vitória moral, o derrotado sorria. Sabia que, se o coreto não tivesse sido erguido por ele, o corajoso deputado não arriscaria a escalada. E verificava que, pelo menos, podia suportar o peso do rebelde com seus votos. Substituição difícil – Paradoxalmente, morreu no dia 11 de julho, horas antes que se começasse a formar a longa fila de cumprimentos ao general Ernesto Geisel, que deixava a Petrobras para começar a caminhada até a Presidência da República. Para muitos, não há dúvida de que ele particvipou de todas as articulações destinadas a assegurar a sucessão de Medici por Geisel. Para seus inimigos, ele preferiria outra solução. De certo, só se sabe que quinze dias antes do anúncio do nome admitia que o general tinha “99 chances em 100”.

O futuro político de Müller era tão imprevisível quanto as oscilações de seu passado. Nos próximos dois anos ele deveria voltar a praticar uma de suas grandes acrobacias, transformando-se de presidente de uma Arena cordata e temerosa em líder de um partido do qual o novo governo talvez exija menos queixas e mais atividade.

É possível afirmar que a missão de Müller na Arena estava praticamente esgotada. Contudo, observando-se as dificuldades provocadas pela sua ausência física dos cargos, verifica-se que os quadros da nova situação ou estão discretamente afastados ou ainda não apareceram. O lugar de presidente do Senado deverá ser preenchido por indicação do presidente da República, continuando o senador Paulo Torres na vice.

Até o Diário da Justiça – Talvez ainda seja necessário muito tempo para que o Filinto Müller político consiga abater a sombra do chefe de polícia. Contudo sem que nenhum dos dois se anule, isso inevitavelmente haverá de acontecer, estabelecendo-se o peso devido a todos os atos do senador que, com a pressão das acusações, tornou-se um político correto e, sobretudo, sereno. Morreu ao lado da esposa, Consuelo, que conheceu no exílio, em 1926, e sem a qual dificilmente viajava. Ela, por sua vez, acompanhava os menores detalhes da atividade política de Müller e confessava: “Até o Diário da Justiça eu leio”. Filinto Müller estava disposto a não se candidatar novamente em 1978, quando seu mandato deveria terminar.

DOCUMENTO – As cartas de Müller
Desde 1955 até 1968, quando seu sobrinho Gastão Müller chegou a Brasília com um mandato de deputado federal, o senador Filinto Müller manteve com ele uma longa correspondência política e pessoal. Dava conta de seus principais contatos políticos, desdobrava-se em conselhos ao herdeiro de seu nome na política de Mato Grosso. Ao escrever, o senador produziu um interessante documento não só de suas posições pessoais, como também dos hábitos e das ideias de um político. Poucas vezes um homem público pode ser visto com tanta clareza através de cartas. Nelas, aconselhava dissimulações, urdia armadilhas e ensinava truques que, divulgados, poderiam dar-lhe a imagem simplória de um espertalhão. Contudo, através dos documentos de Gastão Müller percebe-se também que o senador, mesmo nos períodos mais atribulados da vida política brasileira, era um permanente defensor do sistema representativo. Como bom político, a sua sobrevivência dependia exclusivamente do sistema democrático.

Filinto Müller morreu dia 11 de julho de 1973, aos 73 anos, na queda de um Boeing 707 da Varig, nas imediações do aeroporto de Orly, de Paris.

(Fonte: Veja, 18 de julho, 1973 – Edição 254 – DATAS – Pág; 15 – O fim do grande político – Pág; 35/39 – ESPECIAL/ Pág; 20)

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