Neal Cassady, o pai dos hippies, ao fazer da carona um modo de vida, inspirou várias gerações.

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O PAI DOS HIPPIES

Neal Cassady (1926-1968), o pai dos hippies, ao fazer da carona um modo de vida, inspirou várias gerações.
Sessenta e quatro mil, novecentos e vinte e oito! Essas foram, reza a lenda, as últimas palavras balbuciadas pelo espantoso Neal Cassady. Quem escutou o enigmático suspiro foi um mirrado grupo de indios tahaumaras que passava ao lado da linha férrea no ardente deserto mexicano, a 4 quilômetros da estação mais próxima, em Guanajuato, norte do México. Era a manhã de 4 de fevereiro de 1968, e os nativos evidentemente não alcançaram o significado dos algarismos que, junto com o último suspiro, derramaram-se da boca ressequida do gringo poeirento caído junto aos trilhos.

Se tivesse quatro dias mais, Neal Cassady iria comemorar seu 42° aniversário. Mas ninguém pode dizer que foi pego de surpresa pela morte – e, menos ainda, que ela não tenha sido coerente com a trajetória do falecido. Cassady morreu drogado, sozinho, (relativamente) jovem, no auto-exílio e à beira do caminho. O nobre selvagem que influenciou toda a literatura e a geração beat foi um desses personagens definitivamente maiores que a vida. Foi o frenético protagonista de On the Road, de Jack Kerouac, o “herói secreto” de Allen Ginsberg, um coquetel de James Dean com Marlon Brando e uma pitada de Maiakovski, o vagabundo celestial, o pai de todos os hippies, o patrono da delinquência juvenil e da rebeldia sem causa, o motorista sem limites. Um genuíno herói americano.

Nascido em Salt Lake City em 8 de fevereiro de 1926, criado nos becos de Denver, Colorado, por um pai alcoólatra, Neal passou a adolescência em reformatórios lendo Nietzsche e histórias em quadrinhos e escrevendo longas, loucas cartas. Pelas vias transversas que sempre marcaram sua vida, tais cartas chegaram as mãos (e aos espíritos) de Ginsberg e Kerouac. E deflagraram uma revolução literária na América.

O vertiginoso estilo de Neal, sua torrente verbal sem pontos ou vírgulas, desatolou Kerouac do areal criativo onde ele se encontrava e o levou a escrever, em delirantes três semanas, o clássico On the Road – Pé na Estrada (1957). É o livro que transformou Cassady em personagem imortal. A vida (e a incipiente obra) do homem que Kerouac batizou no livro como Dean Moriarty também inspirou Ginsberg a criar um dos mais fulgurantes e sombrios poemas dos tempos modernos, Uivo (1956). A súbita fama tornou Neal Cassady prisioneiro da própria lenda. Mas ele ainda conseguiu incrementá-la ao partir com Ken Kesey (autor de Um Estranho no Ninho, 1962) em uma louca viagem de ônibus e de ácido, de costa a costa da América. Em meio a tantas vertigens, Neal escreveu seu único livro, parte inicial de uma autobiografia inconclusa, chamado O Primeiro Terço (lançado três anos após sua morte).

O fim da linha se deu naquela manhã de 1968. Após ingerir colossais doses de pulque, bebida fermentada feita de cacto, Cassady partiu, doidão e a pé, de Celaya, cidadezinha no meio do nada, até San Miguel de Allende, próxima a lugar nenhum, anunciando para sua jovem amante que iria contar quantos dormentes havia na linha férrea entre um vilarejo e o outro.
-Sessenta e quatro mil, novecentos e vinte e oito!
– Foi o que os tahaumaras escutaram o gringo dizer, antes que a insolução e a desolação levassem Cassady para brincar em outros campos do Senhor.

(Fonte: Super Interessante – Dezembro de 2003 – Edição 195 – Quem foi? – Por Eduardo Bueno – Pág; 34)

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