Janet Collins foi grande referência de mulheres negras lutadoras
Janet Collins (Nova Orleãs, Luisiana, 7 de março de 1917 – Fort Worth, Texas, 28 de maio de 2003), coreógrafa e professora afro-americana que ousou ser uma das primeiras bailarinas negras.
Janet Faye Collins foi a primeira bailarina negra no Metropolitan Opera. Nascida em 2 de março de 1917, uma das seis crianças de um alfaiate e uma costureira, em New Orleans, Louisiana, região herdeira de uma das mais cruéis facetas do sistema escravocrata estadunidense e que até hoje se perpetua a partir de assassinatos icônicos de jovens negros pelas mãos da policia, estopim para o movimento Black LivesMatter mais atualmente.
Última região a abolir a escravidão, de origem de grupos racistas, como a Liga Branca da Cidade Crescente (muito similar a KuKluxKlan), responsável por diversas mortes de negros e brancos aliados na luta contra o racismo e local onde implementaram o sistema de dominação racial (famosas leis de segregação) “Jim Crow”.
Somente por este breve resumo de seu contexto de vida e por seus feitos, dá pra imaginar a importância dessa mulher para a dança, mais especificamente para o florescimento de artistas negros e todo importante legado para a dança teatral, bem como uma arte verdadeiramente livre, isenta de qualquer amarra baseada na opressão de seres humanos.
Aos quatro anos, Collins se mudou com a família para Los Angeles, onde aos dez anos começou a estudar dança. Alguns relatos alegam que ela não conseguiu se matricular em aulas regulares – reservadas para dançarinos brancos -, então foi forçada a estudar com um professor particular. Outros sugerem que ela se matriculou no Centro Comunitário Católico, onde sua mãe concordou em costurar para o centro em troca de aulas de sua filha. Nessa época, poucos professores brancos aceitavam alunas negras, assim, foi uma das poucas bailarinas negras de formação clássica de sua geração.
Collins também era uma talentosa artista plástica e sua família incentivou-a a renunciar à dança pela pintura, o que na época oferecia mais oportunidades aos negros. Estudou arte em Los Angeles City College e na Los Angeles Art Center School. Embora estudante de arte com uma bolsa de estudos, continuou a estudar dança. Estudou música hebraica com o compositor Ernest Bloch, dança moderna sob Lester Horton, dança espanhola com Angel Casino, coreografia com Doris Humphrey e Hanya Holm e tantas outras figuras importantes, como Adolph Bolm, Carmelita Maracci e Mia Slavenska.
Ainda muito jovem, aos 15 anos, foi aprovada na audição do prestigiado Ballet Russe de Monte Carlo quando a companhia se apresentou em Los Angeles durante sua turnê americana. Na companhia de Leonide Massine, da União Soviética de 1932 já estalinizada, não ingressou porque recusou-se a pintar o rosto e toda pele de branco para dançar (exigência muito comum no ceio das artes cênicas). “Eu pensei que o talento importava, não a cor”, disse certa vez à U.S. News & World Report. E que quando ela chegou em casa chorando, sua tia Adele disse-lhe para continuar praticando: “Não tente ser bom, tente ser excelente.”
Mudou-se para Nova York em 1948, em 1951 tornou-se a primeira bailarina afro-americana a ser contratada em tempo integral pelo Metropolitan Opera em Nova York, assim que Zachary Solov, o novo mestre de balé do Metropolitan Opera, a viu dançar. Mais tarde participou de filmes e de inúmeros programas de TV, recebendo bolsas de estudo e outros diversos prêmios, incluindo o reconhecimento da comunidade negra.
Entretanto, saindo de Nova York onde tinha certo reconhecimento, em vários momentos das turnês não tinha a mesma recepção que os demais bailarinos, era impedida de entrar em espaços públicos, etc.No ano em que Collins se aposentou, Arthur Mitchell, fundador da primeira companhia de dança de bailarinos negros, a conhecida Dance Theatre of Harlem, ingressou no New York City Ballet, o ingresso dos primeiros artistas negros no balé estava começando.
Sua presença numa dança originada das cortes europeias e codificada a partir de corpos brancos questionou padrões seculares e provou que a aparente incapacidade de mulheres negras estudarem e ocuparem importantes papéis na dança, na realidade denomina-se racismo, ideologia desenvolvida para justificar a exploração de um contingente enorme de seres humanos escravizados, à princípio na esfera econômica e, paulatinamente, em todos os espaços da vida humana mundialmente.
Não é que não existia nenhum espaço para Collins na dança como um todo, não existia espaço no balé, especificamente. Ela e tantas bailarinas negras e imigrantes nos Estados Unidos e mesmo no Brasil acabaram encontrando espaço em danças de matriz étnicas e na dança moderna (que surge com o preceito de contestação estética ao balé), oportunizando-as dançar em várias companhias, desenvolverem trabalhos importantes. Mas o que fazer quando se quer dançar algo que se constitui a luz da decadência da nobreza e da ascensão da burguesia enquanto classe dominante, como o balé?
Esta classe que, para se consolidar como tal, se utilizou de milhares de africanos sequestrados e levados a diversas partes do mundo para serem escravizados e assim lhes garantir a acumulação inicial de capital (através do próprio tráfico negreiro, plantations e mais tarde extração de pedras preciosas) que, num segundo momento, financiou todo desenvolvimento da indústria e de tecnologias ímpares na história, bem como ideologias “científicas” para dizer que negros eram inferiores aos brancos e mereciam esse lugar de exploração (origem do racismo), bem como suas concepções estéticas na arte e nas relações humanas.
O balé como produto acabado (os repertórios, a sapatilha de ponta, a supremacia da bailarina, os passos, etc), toda imagem que nos vem à cabeça quando pensamos nesta dança, refere-se ao período estético denominado Romantismo, que corresponde à consolidação da burguesia enquanto classe dominante também esteticamente, concomitante a sua ascensão política, instaurando novos regimes políticos através de suas revoluções. A resistência do balé ao negro tem uma história complexa e de profundas raízes e que vai pra além da própria dança.
Toda forma de opressão serve à necessidade de exploração de uma classe pela outra: dividindo-nos, nos fazendo acreditar que determinados setores sociais são menos que outros, é mais fácil tirar proveito da situação de todos em benefício de uma pequena parcela. No que tange à técnica clássica, em nada essas barreiras são biológicas (uma suposta dificuldade baseada em características biotípicas), pois está mais do que provado que quando negros tem acesso ao conhecimento e domínio dessa técnica, saem-se tão bem quanto qualquer outro. No que tange a técnica clássica, essas barreiras são sim sociais e históricas.
Janet Collins insurgiu-se incansavelmente contra o racismo que incide mais duramente sobre as mulheres, seja pelas especificidades da região e época em que viveu, desafiando as leis de segregação racial, seja “ousando” aprender balé, seja tornando-se a primeira bailarina do Metropolitan Opera entre 1951-1954. Um movimento que não começa em si, senão em toda tradição de luta e revolta de tantos antepassados negros contra ordem,nem se encerra em si, pois pavimenta o caminho para inúmeros artistas negros, a começar por Katherine Dunham, Carmen De Lavallade, Raven Wilkinson, Jenelle Figgins, Misty Copeland, Olivia Boisson, Precious Adams,etc, bailarinas do passado e do presente.
(Fonte: http://www.esquerdadiario.com.br – CONTAGEM REGRESSIVA / Por Mariana Pereira – 23 de fevereiro de 2017)