Hermilo Borba Filho, escritor, romancista e teatrólogo

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Hermilo: “O creme dental importado, eu oponho o mistério nordestino do Bumba-meu-boi”.

Hermilo Borba Filho (Palmares, 8 de julho de 1917 – Recife, 2 de junho de 1976), escritor, romancista e teatrólogo. Exerceu vários cargos, entre os quais, o de professor da Universidade Federal de Pernambuco; diretor do Departamento de Documentação e Cultura e secretário geral da Prefeitura do Recife; pesquisador e diretor do Museu de Arte Popular, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (atual Fundação Joaquim Nabuco).

De sua parte, ele fez o que pode: há cinco anos (1971), abandonou o cigarro e tornou o uísque um luxo avaramente reservado para os fins-de-semana- um esforço digno de um apaixonado pela vida, como se confessava o escritor e teatrólogo Hermilo Borba Filho, falecido no dia 2 de junho de 1976. A irreverência e o humor, porém, ele conservou, e duas semanas antes de sua morte ainda brincava: “Sinto que vou morrer. Já comecei a receber a visita dos imortais da Academia Pernambucana de Letras”.

Mais que uma brincadeira, era o reconhecimento da doença que se agravara desde 1971, quando sofreu a primeira forte crise de coronárias. E quando, a poucos dias da morte, os médicos passaram a enganá-lo dizendo que estava melhorando, ele esperava que virassem as costas, fazia uma rodinha com o polegar e o indicador, e dizia: “Tá’qui que estou melhorando”. Na quarta-feira (2/06), acordou cansado e pela primeira vez se irritou. “Já perdi a paciência. Prefiro morrer.”

No dia seguinte, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco, os amigos buscavam consolo nas histórias engraçadas e fantásticas que Hermilo contava e escrevia. “Se ele estivesse aqui”, lembravam, “estaria nessa roda.” Quem sabe coletando matéria-prima para outro conto sobre velórios. “No nordeste”, ele costumava dizer, “o fantástico anda de mãos dadas com o dia-a-dia.”

Uma paixão –- Nos 59 anos que completaria no dia 8 de julho, Hermilo presenciou, viveu e transmitiu essa estranha combinação. Filho de senhor de engenho de Palmares, nascido dia 8 de julho, ele passou a infância entre os miseráveis cortadores de cana e, desde cedo, assumiu a causa do mais fraco. “Conheci meu pai já na decadência”, ele dizia, “o que foi até bom, pois sempre considerei a aristocracia uma falsidade e o capitalismo um crime.”

Dos canaviais, ele se mudou para o Recife onde, em 1946, ainda estudante na Faculdade de Direito, descobriu o teatro – e não o largou mais. Nesse ano ajudou a fundar o Teatro dos Estudantes de Pernambuco. Mais tarde, ao lado de ArianoSuassuna, criou o Teatro Popular do Nordeste – núcleo que se transformaria até num reduto de toda a cultura universitária pernambucana. A descoberta do teatro levou-o a escrever ensaios e algumas peças (a mais famosa é “A Barca de Ouro”), e garantiu-lhe prêmios de direção por trabalhos em São Paulo e no Rio de Janeiro. O amor pelo palco levou-o, inclusive, a tentar ressucitar, em 1975, o Teatro Popular. Mas a iniciativa “morreu de inanição – como tudo no nordeste”, explicou Hermilo.

Oito netos – Antes de se dedicar ao teatro, porém Hermilo ocupou o cargo de contador de uma empresa – sem nunca ter aberto um livro de contabilidade. Abandonou a faculdade de medicina no terceiro ano, cursou química industrial e só se formou em Direito. Apenas aos 40 anos conseguiu editar “Os Caminhos da Solidão”, seu primeiro livro. A partir daí, o romance, a novela e o conto passaram a integrar sua vida. Na literatura, contudo ,seus últimos anos foram os mais férteis. Pelo menos nove de seus livros foram os mais férteis. Pelo menos nove de seus livros foram escritos nos últimos oito anos. Nas 1 000 páginas da quadrilogia “Um Cavalheiro da Segunda Decadência” (*), terminadas em 1972, Hermilo relata, na primeira pessoa, “as minhas andanças sociais, políticas, religiosas e sexuais”.

Já no ano seguinte, com “O General Está Pintando”, ele se aventura no campo do realismo fantástico de fundo folclórico e sociológico, que retoma em “Sete Dias a Cavalo”, de 1975, e em “As Meninas do Sobrado”, que a Globo lançou em junho de 1975, paralelamente à edição de “Os Ambulantes de Deus”, cujos originais foram confiados à Civilização Brasileira. Hermilo morreu pobre. Sua família precisou recorrer a amigos para pagar as despesas de sua internação. Pai de quatro filhos, deixa inacabado o livro que queria dedicar a seus oito netos e quatro sobrinhos, “História para Netos”, como ele o intitulara, e que chamava de “um compêndio de civismo para a infância brasileira”. Em outubro de 1974, afundado em sua espreguiçadeira, Hermilo recebeu José Maria de Andrade, da sucursal de Veja no Recife, para uma longa conversa.
Abaixo, alguns trechos da inédita entrevista:

Veja -– Qual a importância do depoimento confessional em sua obra?

HERMILO -– Dos meus dez livros de ficção, somente quatro – os que compõem ““Um Cavalheiro da Segunda Decadência” – são escritos na primeira pessoa do singular, parecendo contar muita coisa da minha vida, escandalizando pela rudeza e pela nudez, a minha nudez e a dos outros, obsessivamente fiel à frase de James Joyce: “Não sei escrever sem ferir ninguém”. E à minha própria declaração: “Se não me poupo, como vou poupar os outros?” Bem, com o “Cavalheiro” eu atingi um ponto na vida em que o enriquecimento chegou a um nível da maturação quase passando para o podre: maturação social, sentimental, artística, política, tudo o mais que envolve o homem. Escrevi “Margem das Lembranças” sem saber se teria coragem e forças para ir até o fim. E fui, esvaziando-me, sofrendo mas esvaziando-me. Acho que foi o meu caminho para uma aprendizagem de santidade. Afinal de contas, estamos aqui para isso: para nos tornarmos santos. Se não conseguirmos, é outra coisa.

Veja -– Não parece contraditório que, junto com o uso de palavrões que até lhe deu fama de “escritor maldito”, seus romances tenham um conteúdo tão carregado de misticismo que às vezes o senhor reconhece sentir-se “com asas”?

HERMILO -– Eu não acredito em palavrão, acredito nos doces e líricos nomes que substituem os detestáveis termos científicos quando estamos no campo do erotismo. Por outro lado, acredito em Deus e não vejo como encará-lo sob um ângulo maniqueísta. Acredito em Deus e o vejo em tudo. Mas, se por um segundo sequer eu me sentisse com asas, a minha vida tornaria outro rumo, o que, sinceramente, seria uma pena.

Veja -– Em todas as fases de seu romance está sempre presente o problema da liberdade e da dignidade humana. Como conciliar posições como estas em épocas em que tais valores se mostram em crise?

HERMILO -– Eu não concilio. Eu estou em guerra. Eu corro, conscientemente, aquele risco de que fala a ensaísta argentina Marta Traba: “A reelação inevitável e frutífera do artista com a política converte-se numa aliança compulsiva, que tanto elimina a liberdade de análise quanto a liberdade de crítica, sem as quais a criatividade passa a ser um ato de serviço que não traz sua contribuição imaginativa e transformadora”. Isso é a marca do tempo para todo artista consciente e eu não tenho por que fugir dela. Por mais que queira, não consigo alienar-me. Pertenço a uma “cultura de resistência” e justamente porque a liberdade e a dignidade do homem estão em crise é que utilizo a única arma que tenho – minha ficção – para combater a intolerância sob qualquer aspecto em que se apresente.

Veja -– O senhor tem se batido por uma “arte brasileira”, que utilize as lendas e o folclore brasileiros. Pode explicar de que se trata?

HERMILO –- Os caminhos para se combater o que os ensaístas já vem chamando de “cultura dependente” são longos e difíceis. Eu tento lutar contra isso, mas estou como que num poço de lama, cada vez mais envolvido, ou metido em areias movediças, que, a cada movimento, engolem uma parte do meu corpo. Os trustes e as multinacionais (forma eufemística de trustes) me envolvem por todos os lados. Sou aliás somos, manejados pelos ricos e poderosos, isto desde que nos levantamos pela manhã. Escovo os dentes com um produto estrangeiro, adoço meu café com outro, fumo cigarros que de lá vem, bebo um uísque do além-mar, dirijo um carro apenas de nome fabricado em minha terra, vejo os filmes que eles querem que eu veja, assisto às peças que eles querem que eu assista, como o bife que eles me destinam. A mim, sinceramente, no meu caso pessoal, só me resta uma coisa tipicamente brasileira: minha mulher, nua, no quarto, porque vestida deve estar com um produto deles. E quem me garante, afinal de contas, que ela não esteja pisando em taco ou cerâmica de uma multinacional, já que moro em apartamento alugado? Você entende o que eu quero dizer? É por isso que o creme dental eu oponho o mistério noturno do Bumba-meu-boi. À lâmina de barbear, um boneco que fala. Aos molhos e aos enlatados, um doente de amor que se atira da torre da igreja e se vê voando, atravessando o rio, pairando, desaparecendo no horizonte.

Veja –- O que vem a ser a “literatura bem comportada” contra a qual o senhor se insurge ao longo de seus romances?

HERMILO -– Não vejo como o artista possa ficar indiferente, com escapismos, à sua época. A literatura bem comportada prefere desconhecer a cultura de resistência e se refugia em campos onde os valores do homem atual são relegados a um palno de masturbação intelectual. Não participa, não age, não se compromete, enfim, tem nojo das mazelas do homem. Como praticar, uma literatura que se alheie totalmente das torturas, dos campos de concentração, da fome, das guerras, dos genocídeos, dos cinismos políticos, da diplomacia econômico-financeira? Como burilar um verso de amor se a qualquer momento podemos, pela explosão, desaparecer? Amor é denunciar tudo isto. Esta é a nossa missão: gritar. É infelizemente a época para isso: para uma literatura de gritos, de protesto ou morte.

Veja -– O senhor já se definiu como um romancista que não pode viver fora de sua época. Consequência disso seria uma literatura inseparável da política?

HERMILO -– Necessariamente, não. Eu não vejo como o escritor dos dias de hoje possa se alhear de todo o processo social, econômico, religioso e moral, quase sempre em crise. Por que, então não praticar um ato político com a literatura, desde que esse ato tenha como finalidade não a solução do problema, que aí voltaríamos ao romance-tese, mas a exposição do conflito? Acho mesmo que escrever, nos dias de hoje, já implica um compromisso político, qualquer que seja a tendência do escritor. Não se deseja um panfleto ou um romance que não seja indiferente ao homem em suas necessidades de paz, justiça e liberdade. É isso que nós, escritores, devemos evitar, se quisermos ser, antes de escritores, homens.

* Fazem parte da quadrilogia: “Margem das Lembranças”, “A Porteira do Mundo”, “O Cavalo da Noite” e “Deus no Pasto”.

 

 

(Fonte: Veja, 9 de junho, 1976 –- Edição 405 -– LITERATURA – Pág; 111/112)

(Fonte: Veja, 20 de agosto, 1975 -– DATAS –- Pág; 79 –- LITERATURA -– Pág; 64/65)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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