Quando uma estrela vira um buraco negro: pela primeira vez, cientistas podem ter flagrado o fenômeno
Em 17 de junho de 2018, os telescópios do Atlas (The Asteroid Terrestrial-impact Last Alert System), no Havaí, captaram uma estranha anomalia a 200 milhões de anos-luz da Terra. Na constelação de Hércules, um objeto absurdamente brilhante rapidamente acendeu e desapareceu.
O fenômeno intrigou a comunidade astronômica. Liderada pela astrofísica Raffaella Margutti, professora e pesquisadora da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, e membro do Ciera (Center for Interdisciplinary Exploration and Research in Astrophysics), uma equipe internacional de cientistas chegou a uma provável conclusão: as lentes dos telescópios registraram, pela primeira vez, o nascimento de um buraco negro – ou, ao menos, de uma estrela de nêutrons.
O anômalo objeto observado – tecnicamente uma estrela superluminosa supernova ou simplesmente uma hipernova – foi batizado como AT2018cow. Informalmente, The Cow.
“Acreditamos que The Cow é a formação de um buraco negro ou estrela de nêutrons”, afirma a astrofísica Margutti. “Sabemos, por teoria, que buracos negros e estrelas de nêutrons se formam quando uma estrela morre. Mas nunca antes os havíamos visto logo depois de nascerem. Nunca.”
O estudo foi apresentado nesta quinta-feira em evento da Sociedade Astronômica Americana, em Washington, nos Estados Unidos. E será publicado no periódico especializado Astrophysical Journal.
Conceitos
Conforme explica a Nasa, a agência espacial americana, acredita-se que os buracos negros primordiais sejam aqueles que “se formaram no início do universo, logo após o Big Bang”. Todos os demais seriam buracos negros estelares, ou seja, aqueles que se formam com a morte de uma estrela.
“A formação ocorre quando o centro de uma estrela muito massiva colapsa sobre si mesmo. Esse colapso também causa uma supernova, uma estrela explodindo”, esclarece texto divulgado pela agência.
Supernova, no caso, é um evento astronômico que ocorre no estágio final da evolução de algumas estrelas. Trata-se de uma explosão muito brilhante, de duração curta na escala espacial. O efeito luminoso lembra o do nascimento de uma estrela – mas a consequência é seu apagamento definitivo. A palavra supernova para designar esse tipo de astro foi cunhada em 1931 pelos astrônomos Walter Baad (1893-1960) e Fritz Zwicky (1898-1974).
Este fenômeno costuma ser o que antecede, portanto, a formação de um buraco negro estelar. Ou uma estrela de nêutrons – que é o núcleo colapsado de uma estrela que pode ou não um dia se tornar um buraco negro.
Foi tal momento de transição que os cientistas acreditam terem presenciado. E esta é a importância fundamental da pesquisa divulgada em 10 de janeiro de 2019.
“Verificar este raro evento ajudará os astrônomos a entender melhor a física em ação nos primeiros momentos da criação de um buraco negro ou de uma estrela de nêutrons”, afirma a Universidade Northwestern, em comunicado divulgado à imprensa.
The Cow
A descoberta de The Cow deixou a comunidade astronômica curiosa desde o primeiro momento.
“O que observamos desafiou nossas noções atuais de morte estelar”, comenta Margutti.
O objeto visto tinha um brilho anormal para os padrões. Era de 10 a 100 vezes mais luminoso do que uma supernova típica, conforme mediram os cientistas. Além disso, sua explosão e seu desaparecimento também ocorreram de maneira muito rápida.
Em apenas 16 dias, o objeto já havia emitido toda a sua força. Para o universo, em que os fenômenos costumam durar de milhões a bilhões de anos, este período curto foi muito menos do que um estalar de dedos.
“Vimos que a fonte passou de inativa para a luminosidade máxima em apenas alguns dias”, lembra a astrofísica. “Isso foi o suficiente para deixar toda a equipe animada. Estávamos diante de algo incomum para os padrões astronômicos.”
Outra curiosidade foi que, no momento da explosão, suas partículas voaram a 30 mil quilômetros por segundo – ou seja, 10% da velocidade da luz.
Margutti analisou The Cow com registros obtidos de diversos observatórios – e cruzou os dados. Em sua pesquisa, ela utilizou imagens de telescópios instalados no Havaí, no Arizona (Estados Unidos) e no Atacama (Chile). Diante do que foi visto, os cientistas concluíram que o objeto era formado basicamente dos gases hidrogênio e hélio.
Dados coletados posteriormente de um observatório das Ilhas Canárias fizeram com que astrônomos classificassem The Cow como sendo uma superluminosa supernova, ou hipernova, por conta do brilho intenso.
Várias hipóteses passaram a ser lançadas para explicar o fenômeno, tanto da luminescência quanto do desaparecimento rápido do objeto. Principalmente desde o início de novembro vinha ganhando corpo a ideia de que se tratava da morte de uma estrela – e, consequentemente, do nascimento de um buraco negro. O que agora Margutti e equipe apontam com evidências mais seguras.
Técnica abrangente
A chave para a pesquisa divulgada em 10 de janeiro está na técnica empregada. Enquanto tradicionalmente os astrônomos estudam mortes estelares por meio do comprimento de onda óptico – ou seja, com telescópios captando a luz visível -, a equipe de Margutti contou também com detecções de raios X, ondas de rádio e raios gama para “enxergar” o fenômeno.
Com isso, eles conseguiram estudar o fenômeno mesmo muito tempo depois do brilho visível desaparecer. Para obter tais informações, Margutti usou observações registradas pelo NuSTAR (Nuclear Spectroscopic Telescope Array), da Nasa. Trata-se de um telescópio espacial especializado em captar dados por raios X.
Segundo avaliação de Margutti, a localização privilegiada de The Cow foi um fator que propiciou que este fenômeno fosse flagrado pela primeira vez. Afinal, no gigantismo do universo, devem haver estrelas se transformando em buracos negros o tempo todo. Entretanto, conforme ela apontou na pesquisa, em geral há uma grande quantidade de material ao redor de buracos negros recém-nascidos – e isto acaba bloqueando a visão dos astrônomos.
No caso observado, contudo, havia 10 vezes menos material ao redor do objeto do que o normal. E esta “limpeza” permitiu que os aparelhos captassem diretamente o núcleo luminoso, depois colapsado muito possivelmente em um buraco negro.
“Teria sido difícil verificar isso fosse um cenário normal”, comenta Margutti. “The Cow tinha pouca massa de material em volta. Assim, pudemos observar o seu ‘motor’ diretamente”.
Outro fator foi sua relativa proximidade com a Terra.
“Afinal, 200 milhões de anos-luz estão próximos para nós. Este é o objeto em transição mais próximo da Terra que já encontramos”, afirma.