Lupicínio: o cantor do desespero
Lupicínio Rodrigues (Porto Alegre, RS, 19 de setembro de 1914 – Porto Alegre, RS, 27 de agosto de 1974), foi o inventor do termo “dor-de-cotovelo”. Este termo, ao contrário do que se propagou como inveja – se refere à prática, comum nos bares, do homem ou mulher que se senta no balcão, crava os cotovelos no mesmo, pede um Whisky duplo, faz bolinhas com o fundo do copo e chora o amor que perdeu.
Lupicínio Rodrigues é uma das figuras mais interessantes e complexas da música brasileira. Nascido em Porto Alegre, o cantor e compositor era conhecido como o inventor da dor de cotovelo, compôs músicas que entram facilmente no rol das mais melancólicas do cancioneiro nacional, é o autor do hino do Grêmio e tinha conhecida vida na boemia.
Estava bem longe o tempo de seu apogeu. As grandes glórias de sua carreira haviam ficado esquecidas nalguma mesa de cabaré dos anos 40. Nem a radiofônica explosão da Nacional carioca, no começo da década de 50, foi suficiente para, outra vez, espalhar as radiações de seus lamentos, desesperos, mágoas, angústias, pelos vários cantos do país. E mesmo assim, embora já não encontrasse intérpretes dispostos a assumir a desabrida e sincera vulgaridade que sua imaginação desfiava, ele continuou compondo, e cantando, e até mesmo começou a trabalhar pelos próprios companheiros, atirando-se com incansável empenho na luta pelo respeito aos direitos autorais.
Há alguns meses, porém, pelas graças sempre bem-vindas de Elis Regina, Gal Costa e Caetano Veloso, carinhosos recriadores de alguns de seus velhos sucessos (“Cadeira Vazia”, “Volta” e “Felicidade”), até mesmo a juventude, que talvez o conhecesse de nome mas com certeza não tinha interesse em conhecê-lo de perto, passou a incluir seu nome na lista de seus fugazes amores. E Lupicínio Rodrigues desfrutou o seu renascimento – como todos os clássicos.
No dia 10 de maio, a cabeça meio calva rebrilhando pelo suor que uma bateria de refletores fazia brotar, humildemente ele comentaria, durante a gravação de um programa da “Séria Documento”, nos estúdios do canal 13, Bandeirantes de São Paulo, os efeitos do novo sucesso: “Bem, pelo menos tem mais gente moça frequentando meus dois bares em Porto Alegre”. Seria sua última, e efêmera, alegria. Doente dos rins, o coração enfraquecido, apenas duas semanas antes de completar 60 anos, na terça-feira, dia 27 de agosto, Lupe morreu.
Som controle Quarto filho de uma fiada de 21, o menino Lupicínio nasceu em Porto Alegre, no bairro da Ilhota, junto ao arroio Dilúvio, num mês particularmente pródigo em enchentes – a parteira que o trouxe ao mundo chegou de barco à casa dos Rodrigues. E a sua infância, pobre mas sem dificuldades, dividiu-se entre muitas peladas, algumas surras e bem poucos estudos. Para manter o filho sob alguma forma de controle, o pai o inscreveu como “voluntário” no Exército. E foi na tropa que ele iniciou sua carreira artística, em fins da década de 20, como cantor de um conjunto formado por soldados.
Lupicínio jamais tocou qualquer instrumento. Mas em 1932, com 18 anos, ganhou um elogio de Noel Rosa, que visitava Porto Alegre, e ouviu o colega gaúcho cantar marchinhas de carnaval. Estimulou-se. E, em 1935, de parceria com o cantor Alcides Gonçalves, começou a compor profissionalmente. A dupla produziu, por exemplo, “Pergunte aos Meus Tamancos”, “Quem Há de Dizer”, “Maria Rosa”, “Cadeira Vazia”.
Mas de que maneira, numa época praticamente sem comunicações, conseguiria um compositor gaúcho fazer sucesso nos grandes centros artísticos do país, São Paulo e Rio de Janeiro? Para Lupicínio, houve “quase um milagre”. Na década de 30, alguns cabarés de Porto Alegre, que só tocavam suas músicas, eram exclusivamente frequentadas por marinheiros – e esses viajantes levaram, num processo de transmissão boca-a-boca, os versos de “Se Acaso Você Chegasse”, até um produtor da RCA Victor, no Rio de Janeiro. No dia 19 de julho de 1938 o samba foi gravado por Ciro Monteiro. Através dele, Lupe e o próprio Ciro se tornaram conhecidos em todo o país.
A punição do remorso – E então veio o período da chamada “música-de-dor-de-cotovelo”. Boêmio inveterado, Lupicínio envolveu-se numa infinidade de casos amorosos. E para cada paixão frustrada imaginou um verso. De uma certa “Maria Rosa”, que se entregara a muitos, desforrou-se contando que ela “agora, vestindo farrapos, pede nas portas pedaços de pão”.
Através de “Nervos de Aço” manifestou sua incontrolável aflição sentimental: “Eu só sei é que quando eu a vejo me dá um desejo de morte ou de dor”. Com “Ela Disse-Me Assim” desferiu sobre si mesmo a punição do remorso: “Por um simples prazer, fui fazer meu amor infeliz”.
Cantar sua própria depressão, aliás, foi a marca de sua vida e de sua arte. Pois o bom Lupe, amigo leal, patrão dedicado, continuaria um autor agoniado mesmo depois de encontrar a sua Felicidade, em 1950, com Cerenita que lhe deu um filho e foi sua mulher até a morte. Vingança, por exemplo, ele compôs praticamente na lua-de-mel, para amaldiçoar, impiedosamente, uma antiga e infiel companheira: Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.
Naquela mesma época, nascia a televisão brasileira, o rádio se desprestigiava. E os temas idealizados por Lupicínio, sempre banais, muitas vezes chocantes, não mereceram o direito de viajar pelo país através dos proliferantes vídeos. Toda uma geração ficou sem conhecer sua música. Foi uma pena.
– Na década de 1960, ele foi quase ao ostracismo, sofreu muito com a invasão da jovem guarda, do rock, da tropicália, da bossa nova. O gênero em que ele compunha ficou em segundo plano, principalmente em Porto Alegre. Ele foi voltar só depois, nos anos 1970.
(Fonte: Veja, 4 de setembro de 1974 - Edição 313 - Música/ Por Sílvio Lancellotti – Pág; 76/77)
O compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues morreu em 27 de agosto de 1974, de insuficiência cardíaca, aos 59 anos. O mestre do samba no Rio Grande do Sul foi velado no Olímpico, coberto com a bandeira do Grêmio, time para o qual compôs o hino que se tornou famoso.
(Fonte: Zero Hora – ANO 51 – 27 de agosto de 1974/2014 – HÁ 40 ANOS EM ZH – Pág: 44)