MARCELLO, O GRANDE
Marcello Mastroianni (Fontana Liri, 28 de setembro de 1924 – Paris, 19 de dezembro de 1996), considerado o maior ator italiano, belo, galante e agradecido à vida, trabalhou até o fim para criar sua multidão de tipos inesquecíveis.
Diz a lenda que uma senhora dançava chá-chá-chá numa boate de Hollywood, anos trás, e de repente se aproximou da mesa de Marcello Mastroianni. “Eu o vi num filme de televisão, uma noite destas, e você era o homem mais lindo do mundo”, disse, virou as costas e sumiu. Garantem que era Greta Garbo. Na quinta-feira, dia 19 de dezembro de 1996, quando um enorme pano negro cobriu a Fontana di Trevi, o inesquecível cenário onde Mastroianni seduzia Anita Ekberg numa das cenas mais famosas do cinema, em A Doce Vida, a água foi desligada numa homenagem muda dos romanos ao seu maior ator.
Naquele momento, milhares de imagens de Mastroianni em seus mais de 120 filmes iluminavam as telas de TV no mundo e uma multidão de mulheres quarentonas ou cinquentonas suspirava o quanto realmente ele era lindo. Pena que quando eram mocinhas não achavam graça num galã tão mais velho. Finalmente elas o compreendiam, num desses milagres cinematográficos que têm o dom de embalsamar o tempo.
O mais famoso dos italianos estava rejuvenescido e mais vivo do que nunca. Em muitas cidades da Itália, os títulos de seus numerosos filmes eram anunciados nos cinemas em letras minúsculas. Em letras garrafais informava-se o que valia a pena: Marcello Mastroianni triunfa mais uma vez!
Morto aos 72 anos, de câncer no pâncreas, no seu apartamento no Boulevard Saint-Germain-des-prés, em Paris, morreu ao lado de sua mulher Anna Maria Tato, de sua ex-mulher Catherine Deneuve e da filha de ambos, Chiara. Ficaram em Roma esperando a chegada do corpo Flora, com quem estava casado havia 48 anos e da qual nunca se divorciou, e a filha Barbara, de 46. Ele sabia que estava doente havia um ano, mas escondeu a notícia para não atrapalhar a carreira da peça As Últimas Luas, que excursionou pela Itália, pois tinha medo de que o público notasse sua magreza, seu ar cansado, e o aplaudisse por piedade. Como se merecesse isso. Nessa peça, o texto o obrigava a dizer que gostaria de morrer numa noite de Natal, com todas as praças cheias de árvores iluminadas. Quase.
Animal cinematográfico Podem ter sido capricho, extravagância ou mera intuição de que seus dias estavam contados ou motivos que o levaram de volta ao palco, onde começou a carreira antes de se tornar um animal radicalmente cinematográfico. Havia-se desinteressado tanto pelo teatro que chegou a elogiar as pessoas que dormiam durante os espetáculos, aquela coisa tão chata. No entanto, depois que acabou a II Guerra Mundial, foi pelas mãos e debaixo da ira do já majestático Luchino Visconti que o ex-futuro estudante de arquitetura e desenhista amador começou a representar. O diretor achava que ele tinha talento, mas que seus modos eram de gorila. Fizeram peças de Checov, Arthur Miller e Shakespeare, e depois os filmes Um Rosto na Noite e O Estrangeiro. Mas nos últimos 49 anos, de Os Miseráveis, de Riccardo Freda, a Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira, concluído recentemente em Portugal, transformou os estúdios de cinema no seu campo de batalha, sua casa e seu parque de diversões. “Não há nada melhor no mundo”, dizia, “ficar lá, o dia inteiro, conversando com as pessoas e depois sair para jantar. Um dos problemas do teatro é que se trabalha justo na hora do jantar.”
Nos últimos dois meses Mastroianni ditou sua vida para um amigo, o escritor Enzo Biagi, que vai publicá-la em livro em 1997, pois queria esclarecer “algumas dúvidas” à posteridade. Não há muitas, pois Mastroianni era tão extrovertido e tão alheio ao julgamento público que o seu lado bom e o outro lado são amplamente conhecidos.
Num lado desses “esclarecimentos” se verá o macho latino perseguindo uma aeromoça pelos aeroportos do mundo e um fauno sorridente olhando as moças na praia. “Isso me deixa doido. Como minhas fantasias são excessivas, minha vida é um nunca acabar de amores”, disse. Muitos não foram fantasia – Sophia Loren, sua parceira em doze filmes, Romy Schneider, Jeanne Moreau – e dois foram caso sério – além de Deneuve, Faye Dunaway. As duas o dispensaram com palavras que pareciam combinadas, classificando-o como “monstro de egoísmo”. Ele concordou. Flora, a esposa eterna, tinha um namorado espanhol dez anos mais novo que ela e dizia que o marido gostava de vagar, e por isso ela deixava a porta de casa sempre aberta. “Sinto-me um pouco culpado por essas coisas, mas só um pouco. Os atores são meio crianças”, justificava, sem muita convicção. Todas elas reclamavam que Mastroianni fumava três maços de cigarros por dia, que trabalhava como um condenado, tinha uma escandalosa coleção de 500 pares de sapato e era capaz de guiar até 300 quilômetros só para comer um prato de que gostasse. Isso acontecia sempre na Itália e aconteceu uma vez no Japão. Os japoneses, espantados e encantados, passaram a tratá-lo como “Maiki, o magnífico” – assim o apresentavam nas portas dos cinemas.
Favorito dos grandes – Ele cavou trincheiras nos Alpes, foi prisioneiro dos nazistas, fugiu e ganhou uns trocados vendendo os lenços que desenhava às tropas aliadas recém-chegadas à Itália. Pelo menos uma recordação de sua infância daria uma cena antológica de um filme nostalgia. Mostraria ele, o irmão Ruggero (depois um dos maiores montadores do cinema italiano) e os pais na sua cidadezinha natal, Fontana Liri, ao sul de Roma, diante de uma tela. O pai, marceneiro, era diabético e mal enxergava: a mãe era quase surda. Mas adoravam cinema e faziam um para o outro uma troca de irradiação de imagens e sons.
O belo Marcello, mais tarde, brilharia nas telas como um sedutor incomparável. Trabalhou com todos os grandes diretores italianos, de Vittorio de Sica a Ettore Scola, de Michelangelo Antonioni a Federico Fellini, de quem se considerava alter ego e com quem fez, depois de A Doce Vida, um dos mais extraordinários filmes sobre a angústia da criação artística, Oito e Meio. Nenhum ator de sua estatura produziu tanto, e com tanta variedade. Esculpiu a face de um comunista ardente em Os Companheiros, um galã vulgar engomado em Casanova 70, ambos de Mario Monicelli, um marido hilário em Divórcio à Italiana, um impotente atormentado em O Belo Antonio, de Mauro Bolognini, um fauno setentão em Casanova e a Revolução, de Scola, e do grande bode preto da existência em geral em A Noite, de Antonioni.
“Sei por que os diretores gostam tanto de trabalhar comigo, e não é pelo meu talento”, explicava. “Sou fácil de moldar, como argila úmida, me transformo no que eles querem e não sou de ficar discutindo.” Só lia por inteiro os roteiros de diretores que não conhecia. As histórias dos amigos ele ia filmando cena por cena, sem se importar com o que viria a seguir e muito menos com o desfecho. Sem dúvida, Mastroianni pertencia a uma classe de artistas intuitivos e práticos, desses que se horrorizam – como disse várias vezes – com os atores que sofrem para compor um personagem ou que para interpretar um louco passam semanas dentro de um hospício “para aprender”. Para ele, um grande orgulho era compor seus tipos com naturalidade, passeando nas ruas, namorando ou comendo pizza. “O grande sofrimento de um ator é quando não chamam para trabalhar”, brincava. Sério, arriscava um conselho aos colegas: “O máximo prazer de um ator é a possibilidade que ele tem de se disfarçar, de brincar de ser. Se resolve ser, a coisa perde a graça”.
Tarzã aposentado – Ao contrário de grandes atores que vieram antes dele, como Humphrey Bogart ou Jean Gabin, ou que estão na ativa, como Jean-Paul Belmondo ou Alain Delon, Mastroianni construiu uma galeria de tipos isentos de artificialismo, de marcas registradas. Há pelo menos três décadas era quase unanimemente reconhecido como o maior ator europeu, batendo o sueco Max von Sydow e um colega de tablado dos tempos de Visconti, o grande Vittorio Gassman – e sobrepujando também as sacrossantas figuras inglesas de John Gielgud, Laurence Olivier ou Alec Guinness, que jamais deixaram de ser antes de mais nada monumentos do palco, concedendo de vez em quando uma figuração em filmes. Sir Guinness, por exemplo, dedica-se aos 82 anos a escrever livros de memórias e ler trechos deles para as plateias, divertindo-as. Mastroianni, três meses antes de morrer, estava diante das câmaras.
Ele consolidou-se como um galã de mortal poder de sedução, sem ser grosseiro. Pelo contrário, na sua carreira de personagens, há mais fragilidade e delicadeza do que qualquer outra coisa, uma porção de homens fracassados, ridículos e comoventes até o patético. Havia, sobretudo, muito humor. Talvez por isso dissesse, entre sério e brincalhão, que seu sonho era interpretar uma nova versão de Tarzan, desde que ele não tivesse mais dentes e a anciã macaca “Chita” o acalentasse. “A morte nã me causa medo, me irrita”, dizia. “A vida foi muito generosa comigo.”
(Fonte: Veja, 4 de janeiro, 1995 ANO 28 N° 1 – Edição n° 1373 LIVROS/ Diogo Mainardi – Pág; 98/99)
(Fonte: Veja, 25 de dezembro, 1996 ANO 29 N° 52 – Edição n° 1476 MEMÓRIA/ Geraldo Mayrink – Pág; 210/213)