O primeiro grande registro do gênero
Cinqüenta anos da Bossa Nova. O nome que consagrou o movimento é de 1957,
mas a primeira gravação de “Chega de Saudade” com a batida original de João Gilberto, marca registrada do gênero, data de 1958.
Procura-se um judeu de um metro e meio de altura, de barba branca, provavelmente careca, beirando os 70 anos. Quem dá o retrato falado do
procurado é Carlos Lyra, que há décadas tenta encontrar o sujeito, sem sucesso.
O baixinho talvez não saiba, mas entrou para a história da música brasileira em meados de 1957, quando exercia o cargo de diretor de eventos da Sociedade Hebraica, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Era preciso bolar com
urgência o nome do espetáculo que iria reunir no mesmo palco uma nova geração de músicos, que vinham de longos ensaios na casa de uma menina
tímida, dona do joelho mais bonito da zona sul carioca, chamada Nara Leão. O diretor de eventos, sem muito tempo para bolar o cartaz do show, decidiu-se pela chamada: “HOJE, OS BOSSA NOVA”.
Uma turma de músicos universitários que cantavam baixinho temas sobre o mar e o sol de Ipanema. Porém não há consenso em torno da data do batismo da bossa nova, o mesmo não pode se dizer sobre a data de nascimento do gênero.
Costuma-se falar em abril de 1958, por ter sido esse o mês em que Elizeth Cardoso gravou o histórico disco Canção do Amor Demais. Nele, João Gilberto, ainda desconhecido do grande público, revelava sua batida de violão revolucionária em duas faixas do LP, “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e “Outra Vez”, de Jobim. Apesar da participação de João,
Carlos Lyra acha um grande equívoco de historiadores e pesquisadores
classificar esse disco de meio século atrás como o marco inaugural da bossa
nova. “Em primeiro lugar, Elizeth nunca foi uma cantora de bossa. Era uma
grande cantora de baladas, de samba-canção, uma intérprete tradicional, que
não tinha nada a ver com o jeito de dividir o canto e de tocar de João”, diz
Lyra, com autoridade de quem foi chamado por Tom Jobim, por causa de suas
lindas melodias, de “o desenhista da bossa nova”.
De todo o modo, o compositor admite: “A bossa nova nasceu com João
Gilberto, mesmo que ainda não se tenha a certeza em que ano ele começou a
fazer as suas experimentações no violão”.
Para o autor de “Coisa Mais Linda”, a data pouco importa, desde que se
reconheça o seu criador. Se os fãs de bossa querem uma efeméride, comenta o
músico, nada mais justo que se comemore os 50 anos da bossa um pouquinho
mais para frente, tendo como marco o início de 1959, quando João entrou no
estúdio para gravar o disco de 78 rotações de número 14.630 da gravadora
Odeon.
Era Chega de Saudade, que, a partir de janeiro de 1959, mudou para sempre a
história da música brasileira e ajudou a formar uma nova geração de
compositores e cantores. Gilberto Gil trocou a sanfona pelo violão; Caetano
Veloso desistiu de ser crítico de cinema; Chico Buarque achou que valia a
pena vencer a timidez pela música; e Edu Lobo deixou de ser apenas o filho
de Fernando Lobo.
A polêmica está longe de acabar. Alguns mais ortodoxos acham que a bossa
não nasceu pelas mãos de João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e
Carlos Lyra, tampouco da turma de universitários comandada por Nara Leão,
Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal. Ela teria sido moldada uma década antes,
quando Dick Farney gravou o samba-canção “Copacabana”, de João de Barro, com
arranjo de Radamés Gnattali? Não, nada disso. A bossa nova teria vindo ao
mundo, isto sim, em 1957, quando Silvia Telles cantou “Foi a Noite”, de Tom
Jobim e Newton Mendonça. Ou, para encerrar o assunto, teria nascido do gogó
de Johnny Alf, que compôs, em 1953, “Rapaz de Bem”, com uma estrutura
harmônica moderna e arrojada para a época?
O jornalista e escritor Sérgio Cabral considera uma bobagem a celeuma criada
em torno do nascimento da bossa nova. Ele, como Lyra, defende que o disco
Chega de Saudade é o primeiro grande registro do gênero, não só por causa do
repertório, mas por ter sido gravado pelo inventor de uma nova forma de se
tocar violão e uma nova forma de dividir o samba, que ia na contramão do
estilo cantado por dez entre dez estrelas da música brasileira. “Ali começou
todo o processo; no entanto, isso, claro, não diminui o trabalho dos
precursores nem de artistas como Elizeth, que gravaram bossa nova mesmo sem
ser bossa nova”, pondera Cabral. “A bossa, como quase todo gênero, não
nasceu planejada, com regras conhecidas e estabelecidas. Aqueles meninos da
zona sul do Rio de Janeiro, na maioria universitários, mal sabiam que
estavam cantando bossa nova”.
A bossa nova, talvez por ter nascido dos apartamentos da zona sul carioca,
na fase desenvolvimentista comandada pelo presidente Juscelino Kubitschek
(1955-1960), ficou marcada como um movimento artístico de traço elitista,
que abrigava apenas aqueles que tinham classe o suficiente para assimilar a
sofisticação harmônica de suas canções e as letras que retratavam o
cotidiano da classe média alta carioca. Astros como Roberto Carlos, Erasmo
Carlos e Tim Maia, “suburbanos” da Tijuca, bairro da zona norte do Rio,
todos fãs de bossa nova, nunca conseguiram ser aceitos pelos “clubinhos” da
zona sul. Roberto não fez lá muito sucesso na Boate Plaza, templo do gênero;
Erasmo Carlos e Tim só foram gravar juntos com ícones do gênero décads
depois, já consagrados artisticamente.
Lyra não rejeita a fama de elitista cultivada pela bossa, pelo contrário:
reconhece que o movimento surgiu entre jovens bem-nascidos da classe média
alta do Rio de Janeiro. Por outro lado, ele admite que alguns integrantes da
bossa nova, principalmente Ronaldo Bôscoli, propagaram a idéia de que para
pertencer ao movimento era preciso ter o chamado espírito bossa-novista. Foi
inventado pelo Bôscoli para promover a bossa.
O crítico e histpriador José Ramos Tinhorão, considerado o inimigo número 1
da bossa nova, não faz crítica ao traço e elitista do movimento, que para
ele não tem a menor importância, e sim ao perfil “americanizado” do gênero.
“A bossa nova foi um movimento criado por jovens burgueses da zona sul
carioca apaixonados por música americana, principalmente pelo cool jazz. A
bossa nova nada mais é do que uma montagem da música americana feita por
brasileiros”, afirma o sempre polêmico Tinhorão. “É muito fácil entender por
que Frank Sinatra decidiu gravar um disco com Tom Jobim. Por quê? Porque o
que Tom fazia era jazz e ele se sentia próximo daquilo de alguma forma. A
imagem de “clubinho fechado da zona sul”, associada até hoje à bossa nova, é
reforçada por historiadores. Por conta disso, o escritor e jornalista Ruy
Castro, autor de Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova
(Companhia das Letras, 1990), recebeu críticas dos próprios bossa-novistas
na época do lançamento de sua obra.
A cantora Alaíde Costa, vivendo em São Paulo há muitos anos, é uma das
“vítimas” desse quadro. Descoberta por ninguém menos do que João Gilberto
nos estúdios da Odeon, em 1960, Alaíde chegou a brilhar em alguns shows de
bossa nova, mas não foi escalada para participar do histórico espetáculo no
Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, que abriu as portas do mercado
americano para uma legião de músicos brasileiros. Ela não sabe os motivos
para o veto, mas dispara: “Os produtores e empresários da época não viam com
bons olhos uma negra cantando bossa nova. Achavam que eu deveria cantar
samba, que era mais a minha praia”.
E João Gilberto? Enquanto estrelas da bossa nova promovem debates
acalorados sobre o marco inaugural do gênero, o principal nome do movimento
anda cada vez mais recluso. Foram poucas entrevistas desde o histórico disco
de 1959 que o projetou mundo afora. Quem conhece João na intimidade garante
que ele não se parece em nada com o mito criado em torno de sua figura, do
homem solitário e de poucos amigos, que passa o dia inteiro tocando violão,
à procura da batida perfeita. “O João não tem muito saco para a imprensa,
não. Ele não agüenta ler e ouvir sobre as suas manias, acha repetitivo, sem
a mínima graça”, informa Sérgio Ricardo. “Ele é um amigo para poucos. É
preciso entendê-lo. É inteligentíssimo, uma figura doce – quando conversa
contigo parece que está recitando um poema”, elogia.
Para o crítico e pesquisador Jairo Severiano, João sempre foi o mesmo,
antes e depois da fama. Ele só aparecia mais nos anos 1950 e 1960 porque era
obrigado a se relacionar com as pessoas para sobreviver como músico, gravar,
ganhar dinheiro. “Mas de vez em quando ele aparece. Nos anos 80, eu estava
no estúdio da Rádio JB e a porta se abriu: era João Gilberto querendo gravar
uma entrevista sobre seu novo disco”, conta Severiano, que não crê no
aparecimento de um novo João Gilberto. “Depois dele, apesar do surgimento de
grandes violonistas, de grandes cantores, não se fez uma nova revolução. E
nem será feita. No ano 5 mil, se o sujeito não cantar do jeito de João, ele
será menos moderno do que João Gilberto foi em 1959”, sentencia.
(Fonte: Revista Welcome Congonhas – Maio de 2008 – Ano II – Nº 14 –
História/Por Tom Cardoso – Pág; 54 a 59)