A primeira empresa teatral do Brasil composta exclusivamente por negros

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A história da Companhia Negra de Revista (junho de 1926 – julho de 1927)

A primeira empresa teatral do Brasil composta exclusivamente por negros

No segundo semestre de 1926 formou-se a Companhia Negra de Revistas, reunindo músicos e artistas de renome no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Quando se fala na presença coletiva do negro nos palcos brasileiros, imediatamente somos remetidos ao Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento, como marco inaugural. Alguns autores já tinham feito, aqui ou acolá, menção à Companhia Negra de Revistas, na década de 1920, mas sem maior aprofundamento na medida em que não era o objetivo deles: Marilia Barbosa Silva e Artur Oliveira Filho (Filho de Ogum Bexiguento, Rio de Janeiro, Funarte, 1979), Roberto Moura (Grande Othelo, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1996) e Sérgio Cabral (Pixinguinha, vida e obra, Rio de Janeiro, Lumiar, 1997). Porém, será com a leitura do livro de Orlando de Barros, denominado Corações de Chocolat. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-27) que passaremos a ter uma compreensão mais ampla sobre a participação nesse período do negro no teatro brasileiro.

Desde a Proclamação da República muitos artistas negros lograram reconhecimento, amparados pela maior difusão dos espetáculos populares na aurora da cultura de massa, participando do mercado das partituras, dos primeiros filmetes e fonogramas, como Baiano, Cadete, Geraldo Magalhães e tantos outros – época em que Pixinguinha, o mais talentoso dentre eles, se profissionalizou (no ano de 1912). Entretanto, havia uma resistência considerável aos negros e à sua cultura, muitas vezes revelada de maneira exacerbada no mundo do espetáculo. O problema do artista negro, ao que parece, consistia em se mostrar no palco, uma vez que não havia impedimento de que os músicos negros tocassem nas orquestras dos teatros, ocultos no fosso, ou à parte, sem destaque nem foco de luzes.

Mas, a partir da década de 1920, verificou-se uma renovação com a introdução de coristas pretas e mulatas, muitas vezes chamadas de black-girls, anunciadas como exótica novidade, e os músicos pretos e mulatos das orquestras do teatro de revista passaram a ser chamados de “professores”, como se fazia com os músicos brancos. Tal perspectiva era um reflexo brasileiro de um movimento internacional de valorização da cultura negra, que já havia conquistado espaço desde a segunda metade do século XIX, acelerando-se particularmente depois da Primeira Grande Guerra, com o irrompimento do jazz e de diversos gêneros de danças que ganharam o mundo. A procura por talentos afro-americanos na Europa permitiu que muitos artistas vindos dos Estados Unidos, de Cuba, da Martinica e de outras regiões encontrassem oportunidade para seus espetáculos.

Vale salientar a existência em Paris de grande popularidade em relação a tudo que dissesse respeito à África. Assim, com retumbante sucesso, estreou no teatro do Champs-Élysées, em 1925, o espetáculo Revue nègre – selvagem, primitivo, erótico mas, ao mesmo tempo, um evento moderno, afinado com a exposição de Art Déco que se realizava na mesma época. O barbarismo da Revue nègre se revelou por outro aspecto: Josephine Baker, que havia hesitado em desnudar os seios, não se importou em exibir as nádegas. Os acontecimentos da Revue nègre não passaram despercebidos no Rio de Janeiro, mesmo porque muitos dos jornais e revistas dos anos 1920, e mesmo depois, noticiavam regularmente o que acontecia nos palcos em Paris, como um manifesto subsidiário da antiga vinculação cultural brasileira à francesa. Exemplar nesse sentido é a matéria de um vespertino em artigo que estampa uma foto de Josephine Baker.

Em meados dos anos 1920, o teatro musical, especialmente o gênero “revista”, era uma das formas mais populares de entretenimento nas principais cidades brasileiras, sobretudo no Rio de Janeiro. Porém, diante da concorrência estabelecida pelo cinema, surgia para a preservação do teatro de revistas toda uma reação modernizadora, da iluminação sofisticada aos cenários “futuristas”, ao mesmo tempo em que se substituía a ênfase no texto pelos aspectos espetaculosos, pelo bizarro, inédito, exótico.

Essas características foram reforçadas pelas visitas de companhias estrangeiras, como a espanhola Velasco ou a francesa Ba-Ta-Clan. Foi exatamente diante dessas circunstâncias que surgiu no Rio de Janeiro a Companhia Negra de Revistas que, entre 1926 e 1927, eletrizou a crítica e o público, encenando algumas peças, também apresentadas em São Paulo, Minas Gerais e outros estados pelos quais a companhia excursionou. Em todos os lugares provocou polêmicas e debates, às vezes favoráveis, às vezes sob a forma de furibundos ataques racistas, não raro com cruéis pilhérias que traduziam as dificuldades e a situação do negro nos palcos brasileiros.

No começo dos anos 20, um artista mulato baiano, João Cândido Ferreira, esteve em Paris, apresentando-se em vários espetáculos de variedades. Inicialmente, intitulou-se Jocanfer, mas não tardou, por sua cor, que lhe chamassem de “Monsieur De Chocolat”, logo depois abreviado pela retirada do Monsieur. Em seu retorno ao Brasil, De Chocolat resolveu criar uma versão do “teatro negro”, idealizando a forma e a adaptação, associando-se ao cenógrafo português Jaime Silva para organizar a Companhia Negra. A sua estréia ocorreu no Rio de Janeiro em 31 de julho de 1926. Seu advento assinalou o início do teatro negro no Brasil, isto é, uma variante temática do teatro ligeiro que, sem modificar as estruturas dos gêneros existentes nas revistas e burletas, procurou estilizá-los com números de danças e canções inspiradas na cultura afro-brasileira ou afro-americana. Outro aspecto inerente a essa manifestação foi a constante referência à epiderme, uma espécie de sublimação brasileira das diferenças raciais, tão assinaladas pelas “marcas de cor”, conforme os títulos das revistas apresentadas: Tudo preto, Preto e branco, Carvão nacional, Café torrado.

(Fonte: Veja, 14 de junho, 1972 – Edição n° 197 – DATAS – Pág; 15)
(Fonte: Revista de Antropologia – Rev. Antropol. vol.50 no.1 São Paulo Jan./June 2007 – Jeferson Bacelar /Professor do Departamento de Antropologia da USP e pesquisador do CEAO)

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