Luís da Câmara Cascudo, o mais ilustre intelectual da minha família, e, segundo Jorge Amado, “o homem mais importante do Brasil neste século”, faleceu em 1987, mas continua sendo o maior cachaçólogo do planeta, de todos os tempos. Nenhum outro cientista estudou mais profundamente o universo humano da pinga do que ele. Cascudo duvida que existisse cachaça, aguardente de cana-de-açúcar, na Europa ou em África, mesmo descobrindo registros importantes do nome na literatura portuguesa. Sá de Miranda (1481 1558) verseja na sua CARTA II: “Ali não mordia a graça, / eram iguais os juizes; / Não vinha nada da praça, / Ali, da vossa cachaça! / Ali, das vossas perdizes!” É o primeiro registro que se tem notícia do nome cachaça. O gênio potiguar afirma que é certo que se fabricava e se bebia cachaça no Minho, durante o reinado de D. João III, mas não era o destilado da cana, e sim a aguardente obtida das borras, “das pisas de uvas no lagar”. Gil Vicente publica, em 1525, “vales para açafrão e canas açucaradas”, na Beira. Cascudo informa, ainda, que Nicolau Lanckmann viu cana de açúcar ao redor de Coimbra. Eu também duvido disso tudo. Cachaça, que, concordo, vem do espanhol cachaza, excluídas outras versões, na Península Ibérica designava uma bagaceira inferior, ou um apelido maldito, menor, ofensivo, dado à aguardente das cascas das uvas. Era o nome chulo da aguardente, da bagaceira. O primeiro registro do termo, na Terra Brasilis, devemos ao médico holandês Guilherme Piso e ao naturalista alemão Jorge Marcgrave, na obra História Natural do Brasil, editada em Amsterdam, em 1640. Descrevendo o processo dos primeiros engenhos brasileiros, eles escreveram: “… A escuma é recebida numa canoa posta em baixo, chamada tanque, e assim também a cachaça, a qual serve de bebida para os burros”. Ainda não era a bebida alcoólica que temos hoje. Essa cachaça era a que André João Antonil nos revela em 1711 no clássico Cultura e Opulência do Brasil, a primeira escuma, que caía no cocho de pau e servia para as bestas, cabras, ovelhas e porcos. Porém, muito antes, Jean de Léry , no século do descobrimento, já falava em embriagues pela “garapa azeda ou aguardente”, que, na verdade, também não era o destilado, mas o caldo de cana fermentado. Garapa doida, antes de ser o sinônimo atual de cachaça no Acre, teve o mesmo significado. Irrelevante a distinção original entre cachaça, aguardente obtida da destilação das borras do mel da cana; e cana ou caninha, aquela obtida do caldo de cana. Hoje, cachaça, cana, caninha, pinga e paraty são sinônimos, independentes da matéria- prima. A primeira referência à cachaça de verdade, destilada da cana-de-açúcar, após a fermentação, mesmo que não se escrevendo cachaça, mas seus eufemismos, foi feita por Pyrard de Laval, em 1610, na Bahia. A citação do nome cachaça com todas as letras, sem pudor ou vergonha, somente foi feita e dicionarizada já neste século. Eu estudo o assunto desde menino designações, significados, processos, produtos, tipologias, variações, épocas e estou convencido de que a aguardente de cana-de-açúcar, a nossa cachaça, a nossa pinga, nasceu aqui, dos alambiques chegados com os primeiros colonos. O primeiro engenho foi construído em Santos, SP, por Martin Afonso de Souza, em 1534, o Engenho dos Erasmos, hoje em ruínas, sítio arqueológico. O nome deve-se a um suíço, Erasmus Scheltz, que, mais tarde, o adquiriu e o transformou em uma rendosa e modelar empresa. A indústria nacional nasceu aí, desse engenho que produzia pinga. Martin Afonso passou pelo Rio de Janeiro, pela Baía de Ilha Grande, que banha Angra dos Reis e Paraty. Pesquisas indicam engenhos na Ilha Grande antes de 1560. Paraty, em 1600, já exportava, para o mundo, pinga maravilhosa. No século XVI, engenhos de açúcar e aguardente pontuavam ao redor da Baía da Guanabara. Mas, se os primeiros alambiqueiros foram os açoreanos, será que, nos Açores, não se destilava cachaça? Creio que não. Nunca encontrei registro pertinente. Os alambiques do arquipélago Atlântico destilavam a bagaceira das cascas da uva e vieram para o Brasil como bens de família, instrumentos de trabalho e, certamente, de prazer. A cachaça não apenas teve seu nome popularizado, generalizado nesta terra. Ela nasceu aqui. No início, bebida dos negros e dos animais. Foi restringida, perseguida, proibida, discriminada. Resistiu, entrou na casa grande, nas bodegas, nos armazéns, nos salões. Hoje é a preferida do povo brasileiro, a bebida mais consumida do País, o segundo destilado mais consumido do mundo. Molhou a goela e alma da gente, invadiu os sentidos da nacionalidade, é paixão e faz parte da história e da realidade do povo brasileiro. Outros países produzem cachaça, como o Paraguai, alguns países caribenhos, mas a sua pátria é o Brasil. Aqui, se fabrica a melhor cachaça que existe, essa sublime e deliciosa expressão da cultura brasileira.
Primeiros engenhos brasileiros de cachaça
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