BENEFICIADOS PELA ANISTIA
Alguns militantes políticos que voltaram ao Brasil em 1979, depois da promulgação da lei
E veio a Anistia (28 de agosto de 1979)
Herbert de Sousa (Bocaiúva (MG), 3 de novembro de 1935 Rio de Janeiro (RJ), 9 de agosto de 1997), o Betinho. Sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro. Seu trabalho mais importante foi o projeto da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Mobilizou várias campanhas para arrecadar mantimentos em favor dos pobres e excluídos.
Nos anos 60, ajudou a fundar a Ação Popular (AP), movimento que luta pela implantação do socialismo no Brasil. Formou-se em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais em 1962. Após o golpe militar de 1964, passa sete anos na clandestinidade e oito no exílio. Volta ao país em 1979 e cria o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Depois de voltar do exílio, fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Foi um dos primeiros intelectuais a advogar em favor das ONGs e em 1992, liderou o movimento pela Ética na Política.
(Fonte: http://www.istoe.com.br – 28/09/11 – ANO 35 – Nº 2185 – Especial ISTOÉ 35 anos – Pág; 154/155)
O ARTICULADOR DO POSSÍVEL
Feliz do país que pode dizer “o Betinho é nosso”. Ele animou o Brasil chamando “fome” de “fome”.
Ao morrer, pouco antes de completar 62 anos, no sábado, 9 de agosto – numa noite que embrulhou o Rio de Janeiro de frio -, Betinho tinha conseguido depurar a sua vida de todos os supérfluos. Voltava a ser, apenas, Betinho. A imprensa não precisava mais qualificá-lo de sociólogo para justificar, ou explicar, sua estatura nacional. “A única utilidade de ser sociólogo”, garantia Betinho, “é que soa bem. As recepcionistas acham bonito quando você preenche a ficha de registro num hotel.”
Com isso, também ficava poupado de tentar explicar a sua verdadeira profissão, que não existe. Ou melhor, só existiu para ele: articulador do possível. O próprio nome que trazia nos documentos de identidade, e de exílio Herbert de Souza, foi ficando dispensável. Para o Brasil inteiro, quem morreu, no sábado de frio, foi Betinho. Foi com esse apelido de menino que solta pipa que ele conseguiu desentorpecer o país, cutucar o ar invejoso do poder nacional, alfabetizar quem esqueceu que “fome”, “cidadão”, “terra” e “emprego” são substantivos, e, no caminho, ainda alegrar multidões. Conseguiu tudo isso, e muito mais, sendo hemofílico e portador do vírus da Aids há onze anos. Jamais perdeu o fino senso de humor e a alegria com as coisas da vida. Nesse sentido, não deveu nada a dois de seus conterrâneos mais ilustres Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. Como bom mineiro, adorava ouvir e contar histórias.
Algumas vinhetas de sua vida:
O mendigo do sashimi
Almoçar ou jantar com o idealizador da Campanha contra a Fome era duro para glutões assumidos. Betinho pedia meia porção e, invariavelmente, acabava convencendo seu parceiro de mesa a rachar um prato. Quem ousaria pedir uma porção inteira? Freqüentador assíduo do restaurante japonês Kampai, situado no térreo da atual sede do Ibase, Betinho nem precisava mandar embrulhar o que porventura sobrasse. Já era automático. Certa vez, saiu de lá com o excedente de meia porção de sashimi. Feliz da vida, depositou o embrulho ao lado de um mendigo que dormia na calçada e seguiu em frente, empolgado com alguma idéia nova. Se tivesse olhado para trás, teria visto o mendigo acordar, abrir a quentinha e olhar intrigado para quatro fiapos de peixe cru.
Orador de arromba
Betinho provocava tietagem explícita quando falava. Certa vez, ao final de um debate na PUC, recebeu uma salva de palmas tão intensa dos 3.000 estudantes presentes que deixou escapar um Oba, isso me dá vida por mais um tempão. Resultado: a garotada dobrou os aplausos e teria ficado ali até Betinho receber vitamina humana para mais 100 anos. Jamais usava projeção de slides, gráficos, textos de consulta ou as infames transparências que socorrem oradores burocratas. Tampouco preparava um discurso por escrito. As idéias iam se organizando no trânsito, já a caminho do pódio. Só precisava de um copo dágua e um microfone. A tietagem mais inesperada lhe chegou no Hotel Transamérica, em São Paulo, quando recebeu o premio Eco 94, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Fez um discurso de arromba para a platéia de empresários e concluiu com um “Quero sonhar acordado. Quero poder anunciar ainda em vida para o meu filho de 12 anos (idade de Henrique, na época) que o Brasil começou a mudar”. Os comensais aplaudiram de pé, os cumprimentos se alongaram, e Betinho precisou ir ao banheiro. Lá dentro, foi abordado de supetão por um industrial de terno e gravata: Sei que aqui não é o lugar mais adequado, mas quero lhe dizer que você me emocionou.
Maria Bonita
Olha a Maria, com um vestido de florzinha!, diz Betinho, maravilhado, ao ver sua mulher com vestido novo. Qual o marido que nota um discreto vestido novo de florzinha depois de quase trinta anos de casado? A cumplicidade entre Betinho e Maria Nakano era total. Nascida numa família de nove irmãos, ela jamais conheceu o Japão, a terra dos pais, budistas. Mas trouxe para o dia-a-dia de Betinho uma serenidade oriental que o ajudou na vida como na morte. O telefone de sua casa começava a tocar de manhã, com plantonistas do Brasil inteiro pedindo a opinião do marido sobre notícias da véspera. Inflação, funcionalismo, concurso de miss, valia tudo. Mas que Bianca é essa?, perguntou Betinho, atônito, no dia em que uma revista queria que ele fosse até Angra dos Reis encontrar-se com a ativista social Bianca Jagger. Maria só entrava em cena quando Betinho atolava além da conta. Como na vez em que ele conseguiu chegar atrasado a um encontro com Rigoberta Menchu (a quem chamava, fraternalmente, de Dagoberta Fumanchu) em sua própria casa! A guatemalteca Menchu, prêmio Nobel da Paz de 1992, aguardava pacientemente na sala, enquanto ele não parava de falar para a Rádio Guaíba, no quarto ao lado.
Ninguém melhor do que Maria para ajudar Betinho a morrer como queria em casa, no seu quarto com vista para o Corcovado e várias favelas, ao lado da família e amigos mais queridos. Henrique, o filho agora com 15 anos que teve com Maria, não esqueceu de lhe colocar a adorada caneta Caran dAche no bolso da camisa e o relógio de estimação no pulso. Não fossem os tubos de oxigênio industrial estocados na sala, nada ali sugeria emergência. Maria deu à morte de Betinho a serenidade que lhe dedicou em vida.
Nobel de chupeta
Indicado para o Prêmio Nobel da Paz em 1994, Betinho adorava arrolar alguns de seus pecados biográficos capitais, incompatíveis com a pose do prêmio. Um dos mais graves foi ter caído na armadilha do irmão Henfil, que fora visitá-lo no exílio do Canadá. Henfil, de Polaroid na mão, inventou que todo mundo iria posar para uma sessão de fotos ridículas. Começou por Betinho. Fabricou um laçarote de papel, prendeu-o no topo da calvície emergente do irmão, tirou uma chupeta do bolso, colocou-a em sua boca e clicou. Betinho tinha 40 anos, na época, e passou os 21 anos restantes com medo de que a foto caísse nas mãos da imprensa. Perco o Nobel, se o pessoal de lá vê isso.
Depois havia a questão do seu currículo. Como explicar aos nobres do Nobel que ele escreveu um artigo em parceria com o cientista político René Dreifuss sob o pseudônimo de Mike Burgers uma marca de enlatados escoceses quando estava de passagem pela Escócia, exilado? Como explicar o branco de vários anos de clandestinidade, em idade produtiva, quando não teve emprego algum? Poderia enfeitar, é claro. Sua desastrada fase maoísta quando quase se matou querendo ser operário, como carregador de caixotes numa fábrica de louças poderia virar pesquisa de campo das condições laboriais na indústria de cerâmica.
Mas e se ganhasse? Vou dar 300.000 dólares para a família ficar bem, e com o resto compro uma rádio que vai se chamar Rádio do Cidadão. Setecentos mil dólares dá para comprar uma rádio, não dá? E, se eu não ganhar, compro um radinho de pilha. Discorre sobre a força da rádio. Betinho fala, brinca, provoca, pensa a sério, imita o discurso em inglês, a viagem de volta, com o milhão na mão, de primeira classe.
Os vencedores do Nobel daquele ano foram os israelenses Yitzhak Rabin e Shimon Peres e o palestino Yasser Arafat.
Do outro lado da vida
Betinho não teria aprovado o caixão modelo Itamarati, feito de peroba-de-campos, com forro interno de cetim branco, que a Santa Casa de Misericórdia gentilmente ofereceu à família. Conhecia tudo de caixões dos 9 aos 15 anos de idade freqüentou assiduamente a funerária da Santa Casa de Belo Horizonte, da qual o pai foi administrador. Sabia distinguir o Extra-Horizonte, modelo topo de linha, de jacarandá e seis alças douradíssimas, dos modelos Embaixador, Esplanada ou Baronesa. Tinha teorias várias a respeito de caixões e seus ocupantes todas divertidas, jamais cínicas. Para ele mesmo, porém, não queria caixão algum, para não ficar ali dentro, confinado e apodrecendo. Daí as instruções para ser cremado. Ele gostaria de ficar vivo ou com as cinzas espalhadas por aí, explicou Daniel, o filho mais velho.
Betinho também sustentava que não ficava bem ele morrer no apartamento da Rua Góis Monteiro, no bairro de Botafogo, onde morou até o ano passado. O edifício se chamava Marajá e o Góis Monteiro, da rua, foi um militar. Pior, um general. “Já pensou o que vão dizer?”, brincava. Morreu no apartamento novo, da Rua Vicente de Sousa, personagem do final do século XX. Tudo a ver. Além de professor, Vicente de Sousa foi fundador e redator da revista Democracia.
As cinzas de Betinho serão espalhadas no sítio que construiu em Itatiaia, em regime de mutirão afetivo. Chamava o lugar de Paraíso. Do outro lado da serra, já é Minas. Betinho é capaz de atravessar jacaré, mísseis e foguetes para chegar aonde precisa, explica o compositor e poeta Aldir Blanc, que o imortalizou na música O Bêbado e a Equilibrista. Do paraíso, Betinho certamente vai dar uma passada em Bocaiúva, onde nasceu em 1935.
Romário vapt-vupt
Dezembro de 1993, a Campanha contra a Fome estava no auge, e Betinho era o figurão nacional. Ainda assim, durante duas horas e meia, ficou de molho no restaurante Tourão, da Barra da Tijuca, aguardando Romário. O jogador o deixou impressionado. “Um de seus seguranças, munido de celular, me fazia chegar flashes do iminente desembarque do homem primeiro ele estava num helicóptero, depois na altura da rua tal, até que chegou.” O mineiro Betinho admitiu uma ponta de inveja com a soberba de Romário no trato com a imprensa. Olhem aqui, foi logo avisando o jogador, eu vou sentar e almoçar com o Betinho e não quero ser incomodado. Se vocês quiserem alguma informação, aguardem a nossa saída lá fora. A conversa foi vapt-vupt, com Romário indo direto aos pontos e deixando a parte ética da campanha de lado. Queria ajudar. Ao final, um de seus amigos se materializou com um texto já impresso, que serviu de comunicado à imprensa. E o melhor é que o texto era bom, lembrava Betinho. Dias depois, chegava ao QG da Campanha contra a Fome um cheque de 4.500 reais, nominal para uma empresa que forneceria 1.000 cobertores. Assinado, Romário.
Utopia ambulante
Betinho sempre proclamou que perdeu a fé aos 27 anos, por obra de um psiquiatra maluco. Só Humberto Pereira, seu amigão e companheiro de Juventude Estudantil Católica, em Minas, e a irmã Tanda não conseguiam vê-lo completamente ateu. Betinho é otimista, acredita no impossível, é uma utopia ambulante. Isso não é fé?, perguntava Humberto, anos atrás. A percepção de Maria Nakano soava mais convincente: Eu o acompanhei em momentos de crise absoluta. Pude observar que não procurou se segurar em Deus. Quanto a Betinho, tratava do assunto com a despreocupação de quem sabia que tinha lugar garantido no céu.
Ontem eu vi Deus anunciou certo dia a uma colaboradora do Ibase.
Ah, é? Como foi?
Ele veio me ver para reclamar que se eu continuasse com essa bola toda, animando esse Brasil todo, ele iria perder o emprego.
Betinho não quis cruzes nem velas no enterro, e seus amigos se despedem dele com uma salva de palmas.
(Fonte: Veja, 20 de agosto, 1997 Edição n° 1509 ANO 30 N° 33 – Memória/ Por Dorrit Harazim Pág; 102/103)