Herbert Marcuse, último grande marxista contemporâneo, capaz de rivalizar em vida com Gyorgy Lukács.

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A revolta dos anos 60: imagem sempre associada às ideias de Marcuse

A última voz

Herbert Marcuse, estudioso das estruturas autoritárias da Alemanha que culminaram no nazismo.

O marxismo de Herbert Marcuse e o caminho da utopia

Herbert Marcuse (Berlim, 19 de julho de 1898 – Starnberg, 29 de julho de 1979), filósofo americano nascido na Alemanha. Herbert Marcuse, o último grande marxista contemporâneo, capaz de rivalizar ainda em vida com o já legendário Gyorgy Lukács, pagou o tributo de uma celebridade nascida em tempos turbulentos: seu nome evoca sempre mais que seus inúmeros livros, artigos e conferências. Marcuse, o refinado pensador judeu, sugere invariavelmente os meios estudantis, a explosão das minorias gauches homossexuais e feministas, nomes de ex-alunos igualmente célebres – como a americana Angela Davis, militante comunista acusada de subversão em 1972, a “encantadora e inteligente Angela” que ele pacientemente defendeu frente à opinião pública.

Marcuse, ex-aluno do fenomenólogo Edmund Husserl e aluno predileto do existencialista Martin Heidegger, será, seguramente, menos lembrado por seu trabalho intelectual, que pela inflamada citação do radical alemão Rudi Dutschke, outro líder estudantil de 1968 que foi seu amigo até os últimos dias: “Marcuse é nosso mestre. A luta por Eros é a luta política”. Ironicamente, o intransigente crítico da sociedade de consumo, o inimigo mortal do pensamento de salão, foi muito citado e pouco lido – mesmo em sua época áurea.

LANÇANDO AS BASES – Sua principal escola foi um grupo de intelectuais da República de Weimar (1918-33) – Max Horkheimer, T.W. Adorno, Friedrich Pollock, Eric Fromm (que foi apreendido muitas vezes nas alfândegas brasileiras), Walter Benjamin, entre outros -, ao qual ele se integrou em 1932: a Escola de Frankfurt. Antes de aderir a esse círculo de pensadores que seria a linha de frente da reflexão marxista nas décadas de 30 e 40, Marcuse havia sido convidado por Heidegger para ser seu assistente na Universidade de Freiburg. Mas o jovem que tinha participado de um soviete de soldados alemães em 1918, entusiasta do movimento “espartaquista” – corrente do comunismo alemão liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht -, e que havia visto, também, o trágico assassinato de seus líderes, a derrota do socialismo e a súbita ascensão do nazismo -, recusou o convite do velho professor simpático ao III Reich com a mesma serenidade com que antes aceitava a influência teórica de Heidegger (em “A Ontologia de Hegel”, sua primeira obra).

Foi neste período “frankfurtiano” que Marcuse lançou os alicerces de todo o seu trabalho posterior. Além de publicações para a Zeitschrift – revista do grupo – e o trabalho coletivo “Estudos sobre a Autoridade e Família”, publicou duas grandes obras: “Ideias para uma Teoria Crítica da Sociedade”, uma leitura humanista dos “Manuscritos de 44” do jovem Marx, e “Razão e Revolução”, um clássico sobre o pensamento de Hegel, que busca no metafísico alemão o fio que conduz ao dialeta Marx.

Com a ascensão de Hitler ao poder, a Escola de Frankfurt migrou, primeiro para Genebra e definitivamente para os Estados Unidos. Lá Marcuse se fixou, obteve cidadania americana e lecionou, de início em Columbia e Harvard, de 1954 a 1965 em Brandeis, e mais tarde na Universidade de San Diego, Califórnia. Foi no exílio que o filósofo produziu as obras de maior impacto – “Eros e Civilização” em 1955; “Marxismo Soviético”, um estudo para o Instituto Russo de Columbia, em 1957; e “O Homem Unidimensional”, em 1964, traduzido no Brasil como “Ideologia da Sociedade Industrial”.

REVOLUÇÃO E REPRESSÃO – “Marxismo Soviético” é uma daquelas raras críticas do regime soviético que não precisam exorcizar Marx para atingir o leninismo. Analisando a realidade soviética e seus dogmas, Marcuse foi um dos primeiros a afirmar alto e bom som que o regime herdeiro de Outubro baseava-se numa utilização tão repressiva da tecnologia quanto a que havia sido engendrada para os fordinhos americanos.

“Erros e Civilização” e “O Homem Unidimensional” foram os livros de cabeceira do movimento antiautoritário que nos anos 60 saiu pelas ruas, universidades e mesmo fábricas, em Berlim, Nova York, Paris e no Rio de Janeiro. “Eros e Civilização”, além disso, foi um verdadeiro sacrilégio nos meios marxistas ortodoxos, porque aproximava Marx de Sigmund Freud. Marcuse promoveu a interseção destas duas personalidades científicas num terreno até então tabu: a utopia. O Freud filósofo, assim como o Marx antropólogo da sociedade, surgem nesta obra como dois laboratoristas do mesmo ideal utópico: o reino da liberdade d eum se complementava na busca de felicidade e liberdade individuais, no princípio do prazer descoberto pelo outro. Marcuse toma a equação freudiana – “Civilização igual a repressão” – e, com a ajuda algébrica do marxismo, a transforma em “Civilização moderna é igual a mais repressão”. O corolário, que interessou sobretudo aos jovens, seria o de que socialismo é igual também a libido satisfeita.

“O Homem Unidimensional” continua a aventura de sua antecessora, mas desta vez diagnosticando a sociedade tecnológica, máquina de supérfluos e repressão. Mais tarde, em “Contra-Revolução e Revolta”, ele alertou para a necessidade de rever os clássicos projetos revolucionários, em vez da repetição exaustiva de fórmulas que couberam, alguma vez, no Palácio de Inverno Russo. E chamou a atenção para o perigoso vírus anti-intelectualista que assola certas correntes radicais. Na melhor tradição de todo pensamento livre, o filósofo Marcuse se especializou em demolir dogmas da direita e da esquerda e sua maior originalidade foi concretizar uma aliança incomum entre anticonformismo e firmeza teórica.

A “GRANDE RECUSA” – A despeito dos afoitos consumidores duma imagem sumária, Marcuse nunca foi o ideólogo de putchs minoritários, nem o profeta dos fanáticos do apocalipse. Condenou teórica e publicamente o terrorrismo, sempre lastimou grupos como o Baader-Meinhoff – sem por isso comodamente execrá-los como “agentes do fascismo”, coisa que une, por exemplo, partidos como o PCI e a Democracia-Cristã Italiana. Nada é mais alheio ao seu pensamento que o irracionalismo, nada mais íntimo que a condenação da falsa racionalidade do século XX. Pondo os pingos nos is, sua grande contribuição prática limitou-se a uma saudável solidariedade intelectual aos movimentos de oposição, do cândido flower-power à extravagante esquerda americana. A “grande recusa”, termo que ganhou sua patente, foi simplesmente o reexame, na era da automação, do mais antigo dilema da teoria política: os caminhos da liberdade. Caminhos que, segundo Marcuse, estavam igualmente distantes da “tolerância repressiva” das democracias ocidentais como dos hospícios políticos do socialismo burocratizado.

Sem dúvida sua crítica do totalitarismo soviético foi aproveitada pela Nova Esquerda. Os partidários da autogestão também lhe são devedores: é necessário construir a liberdade no próprio processo de trabalho, e não apenas em lacunas de ócio. Mesmo o movimento homossexual, se quisesse, seria seu tributário: numa de suas passagens, Marcuse admite que certas práticas tradicionalmente tratadas como “perversões” poderiam estar dentro dum padrão absolutamente saudável de sexualidade. Ao contrário, aliás, de Fromm e Wilhelm Reich, que ele criticou diversas vezes como revisionistas apressados da psicanálise.

PELA UTOPIA – Um voo tão alto de liberdade não poderia deixar de provocar anátemas de todas as direções. A Ku-Klux-Klan chegou a ameaçar Marcuse de morte em 1969, enquanto o Pravda entoava um velho refrão, rotulando-o repetidamente de “agente da CIA”. De fato, Marcuse chegou a trabalhar, durante a II Guerra Mundial, para a Organization of Strategic Services – embrião da CIA. Mas, em pleno conflito armado, esta organização parecia a muitos intelectuais antifascistas, e mesmo de esquerda, que nela se engajaram, como um dos poucos fronts disponíveis na luta contra o nazismo. Marcuse, inclusive, abandonou-a assim que os Estados Unidos entraram na Guerra da Coreia, em 1950.

Até no Brasil em 1968 surgiram manifestações coléricas. Segundo o general Moacir de Araújo Lopes, então no Estado-Maior das Forças Armadas, “o sexo, a porcaria, o descrédito da autoridade, o uso de anticoncepcionais e alucinógenos e a incidência do palavrão” seriam algumas entre as inúmeras novidades que a filosofia germânica teria trazido aos trópicos.

Assim, Marcuse, cuja militância no antigo Partido Social-Democrata tinha se restringido a uma breve experiência juvenil – dos 19 aos 21 anos -, viu-se agraciado com o título de Maquiavel dos novos tempos, quando foi em verdade seu legítimo Thomas Morus. Um pensador utópico, com toda a potência e risco que a palavra encerra. Que errou, por exemplo, como incurável romântico em suas previsões de “um novo homem” nascido da vitória vietnamita sobre os Estados Unidos.

Mas quem não errou sobre o Vietnã em 1967? E Herbert Macuse, com toda a sua ambiguidade, esteve sempre debruçado sobre o presente. Confiante e cético, rigoroso e ousado, enquanto seus antigos companheiros da Escola de Frankfurt haviam se transformado, nas palavras de Brecht, em “Tuis” – intelectuais sombrios, pessimistas e alheios ao dia-a-dia. Marcuse, o pacato filósofo que amava os animais e o silêncio, que dedicou grande parte de seus livros à mulher com quem viveu quarenta anos, Inge, estava de corpo inteiro num dos slogans da intempestiva Paris de 68: “Sejam realistas. Desejem o impossível”.
O filósofo berlinense Herbert Macuse de 81 anos morreu de um ataque cardíaco a 30 quilômetros de Munique, dia 29 de julho de 1979, e o mundo inteiro lê em seu testamento os incendiários anos 60.

(Fonte: http://www.caras.uol.com.br – 2 de março de 2009 – EDIÇÃO 800 – Citações)
(Fonte: Veja, 8 de agosto de 1979 – Edição n° 570 – Ideias/ Por Marília Pacheco Fiorillo – Pág; 121/122)

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