Joaquim Cardozo, mais conhecido por um processo judicial que por sua importante obra poética.

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De cristal e aço

Joaquim Cardozo: mais conhecido por um processo judicial que por sua pequena mas importante obra poética

Joaquim Cardozo (Zumbi, Recife, 26 de agosto de 1897 – Olinda, 4 de novembro de 1978), um generoso talento que conciliou a poesia e a matemática, um grande poeta, um dos maiores que tivemos desde o Modernismo – um poeta engenheiro que ajudou Oscar Niemeyer a criar dezenas de suas obras mais famosas.

RIGOR MATEMÁTICO – Pode ser explicável, mas é de todo modo injusto que da obra deste homem só reponte, para a opinião pública, o desabamento do Pavilhão da Gameleira. Poucos sabem, na verdade, que aos cálculos de Joaquim Cardozo se devem, em grande parte, trabalhos como a Catedral de Brasília, o Palácio da Alvorada, o Congresso Nacional, o Palácio dos Arcos, o conjunto da Pampulha (Belo Horizonte), o Parque do Ibirapuera (São Paulo), o Maracanãzinho e o Monumento aos Pracinhas (Rio de Janeiro). E sua poesia, resumida a uns poucos livros, quase todos esgotados (as “Poesias Completas” são de 1971), é ainda menos conhecida, – mesmo que – como lembra Carlos Drummond de Andrade – tenha exercido e exerça ainda influência sobre os jovens poetas.

Nascido em Zumbi, subúrbio de Recife, a 26 de agosto de 1897, Joaquim Cardozo realizou a proeza de conciliar faces aparentemente opostas de seu enorme talento. “A união de dois extremos”, como disse Alceu Amoroso Lima: “A matemática pura e, ao mesmo tempo, a qualidade poética”. “Ou “a fusão de um rigor matemático com a expressão simples e arejada das coisas do Brasil”, sentencia Drummond. Uma síntese difícil que Joaquim Cardozo – “homem de cristal e aço”, no dizer de Jorge Amado – alcançou muito cedo: no começo dos anos 20 já o surpreendemos a equilibrar atividades como a topografia, o estudo da engenharia, a elaboração de poemas, o desenho artístico, a charge política, o jornalismo e o estudo de línguas (chegou dominar cerca de quinze idiomas, entre os quais o chinês, o árabe e o sânscrito).

Participante da vertente nordestina do Modernismo, escreveu rala mas continuamente, e seu primeiro livro, “Poemas”, não saiu antes de 1947 – e assim mesmo por iniciativa de amigos, que resolveram comemorar o seu 50.° aniversário. Por essa época Joaquim Cardozo já estava no Rio de Janeiro, onde viveria meio século, e onde se integrara ao grupo dos jovens que brigavam por uma arquitetura moderna. Anos antes, vira-se compelido a deixar Pernambuco: paraninfo de uma turma de engenheirandos, fez um discurso que desagradou os representantes locais do Estado Novo, e perdeu o emprego de professor.

REGIONAL E UNIVERSAL – Lançado num momento em que a poesia nacional empreendia um retrocesso rumo ao parnasianismo e ao simbolismo, seu primeiro livro – embora trouxesse apenas 46 poemas – surgiu imediatamente como algo definitivo. Uma poesia de raízes regionais, mas apta a se fazer ouvir em outros mundos. Décadas mais tarde, depois de “Prelúdio e Elegia de uma Despedida” (1952). “O Signo Estrelado” (1960), “O Coronel de Macambira” (1963), “De uma Noite de Festa” (1971), “Os Anjos e os Demônios de Deus” (1973) e “Antônio Conselheiro” (1975), o professor Alfredo Bosi resumiria: “Lírico forte e denso na sua economia de meios, e uma das raras vozes da nossa poesia capazes de soldar lisamente as fontes regionais (no caso, pernambucanas) e o humano universal”.

Em termos de público, Joaquim Cardozo conheceu um solitário sucesso com uma peça em versos, o bumba-meu-boi “O Coronel de Macambira”, diversas vezes encenado nos anos 60. Sua poesia, em determinado momento, povoou-se de signos gráficos e até de referências matemáticas, como em “Último Trem Subindo ao Céu”. Ele experimentou a vanguarda, mas sem barulho – não era, aliás, um homem do ruído. Solteiro por opção (desistiu do casamento depois de uma “experiência” de três meses), viveu durante longos anos com uma empregada e um gato. “Já vivi mais só”, contava com bom humor. “Houve um tempo em que não tinha gato nem empregada.”

Na véspera do Natal de 1977, Joaquim Maria Moreira Cardozo retornou definitivamente a Pernambuco. “A vida está toda vivida”, disse então. Minado pela arteriosclerose que o desconectava do mundo, visitado por uns raros amigos e familiares, ele passou seus meses finais numa clínica de repouso, em Olinda. Só a morte, às 6h do dia 4 de novembro de 1978, aos 81 anos de idade, traria de volta o nome esquecido, quando não ignorado, de um grande poeta.

A morte de Joaquim Cardozo, inevitavelmente, seria ocasião para que se lembrasse também a tragédia irremediável de sua vida, ocorrida há quase oito anos (1971) e que desencadeou a sua bancarrota física e emocional. Quando o Pavilhão de Exposições da Gameleira desabou em Belo Horizonte, a 4 de fevereiro de 1971, esmagando 68 operários, Cardozo, autor dos cálculos estruturais, chegou a ser responsabilizado pelo desastre. E, embora sua culpa nunca tenha sido provada (foi absolvido em segunda instância por unanimidade e morreu antes da decisão do Supremo Tribunal Federal), o episódio amargou-lhe o resto de vida.

(Fonte: Veja, 25 de abril de 1979 – Edição n° 555 – Literatura/ Por Ferreira Gular – Pág; 119/120)
(Fonte: Veja, 15 de novembro de 1978 – Edição n° 532 – Literatura/ Por Ferreira Gular – Pág; 139/140)

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