Pessoa: sempre novos enigmas
Poeta, artista múltiplo, expressou em sua obra as angústias e contradições do homem moderno
Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935), pensador, elegantíssimo prosador, grande poeta português, já se desdobrara em três outros mais – Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos -, chegando à precisão de fixar-lhes as horas e segundos em que nasceram, dados acompanhados de horóscopos completos em inglês e português. No livro “Obras em Prosa” surge à coletânea de sua obra em prosa esparsa em várias correspondências, em artigos e meditações sobre estética, patriotismo, religião. Longe de esclarecer o enigma Fernando Pessoa, porém, este livro apenas amplia sua feição poliédrica e enigmática.
Em carta a dois psiquiatras franceses ele se define como um hístero-neurastênico, embora ressalve “não ser totalmente um cadáver consciente”. Em outra confissão vê coexistirem em si uma sensibilidade feminina e uma inteligência masculina, ou um amor ilimitado pela humanidade freado por um egoísmo abúlico que o irmana a Rousseau. Leitor finíssimo de Shakespeare, de Milton, de Shelley, de filósofos antigos gregos e modernos alemães, abandona toda leitura de chofre e cita como seus livros supremos apenas os “Pickwick Papers” de Charles Dickens, romances policiais. Deixou de se interessar por gente “simplesmente inteligente: as ideias que essa gente tem são iguais às que ocorrem a muitos não-escritores; a construção de suas obras é uma quantidade inteiramente negativa. Descobri que a leitura é uma espécie de sonho escravizador. Se devo sonhar, por que não sonhar os meus próprios sonhos?”
São centenas de páginas espantosas só concebíveis em termos daquilo que o zen-budismo chama de “satori”, aquela iluminação interior que abrange e ultrapassa a inteligência para apreender uma realidade transcendente e impalpável, impermeável à densidade limitadora das palavras e dos conceitos. Este volume inquietante, às vezes até apavorante pela densidade de suas reflexões teológicas, sociais, políticas, estéticas, é como um espelho diante-de-outro-diante-de-outro. Multiplica as imagens múltiplas de Fernando Pessoa pensador e elegantíssimo prosador. Muito mais que elucidar o seu mistério, contudo, somente o adensa e o aprofunda. É, enfim, um livro-chave para se seguir as esplêndidas perfeições verbais do poeta, um espírito complexíssimo, talvez o mais desafiador que a língua portuguesa já teve em todos os seus séculos de existência como idioma autônomo.
(Fonte: Veja, 26 de fevereiro de 1975 – LITERATURA/ Por Leo Gilson Ribeiro – OBRAS EM PROSA/ de Fernando Pessoa – Pág; 82)