Noel Nutels, médico e colaborador dos irmãos Villas Boas na luta pela preservação dos índios.

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Um visionário

Noel Nutels (Ananiev, Rússia, 1913 – Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1973), médico sertanista e sanitarista, colaborador dos irmãos Villas Boas na luta pela preservação dos índios da Amazônia. Foi o médico da primeira expedição Roncador-Xingu, em 1943. A partir desse primeiro contato com os índios, resolveu se dedicar à defesa das populações indígenas e à erradicação das doenças oriundas do contato com o homem branco.

No dia 24 de agosto de 1922, um menino judeu russo, de 9 anos, desembarcava no Recife, com a mãe e a tia, para encontrar-se com o pai. No dia 10 de fevereiro de 1973, aos 59 anos, morreria de câncer, no Rio de Janeiro, após ter oferecido à humanidade o espetáculo comovente de uma das mais impressionantes trajetórias – a vida de Noel Nutels. Tentou discutir cientificamente, a crítica do indigenismo e do genocídio, a análise das pioneiras experiências sócio-etnológicas e médicas desse espantoso homem de sete instrumentos que foi Noel Nutels.

As peripécias de Nutels, os feitos atrevidos e audaciosos cuja imagem infelizmente já esvanece na história nacional, tão ingrata para com os seus verdadeiros homens. Na década de 60 os jornais registravam, como num concerto feérico, as aventuras desse quixote pelas selvas amazônicas ou pelo sertão nordestino, erradicando a malária, lutando às vezes inutilmente contra a tuberculose, educando populações inteiras através da literatura de cordel e finalmente assumindo, com amargura crescente, a sua parcela de culpa na melancólica tragédia dos índios.

Miséria e genocídio – Judeu errante que colocava seus objetivos acima dos governos e dos regimes, Nutels sobreviveu aos acontecimentos de 1964, que o colheram, já exasperado, na chefia de um inviável Serviço de Proteção ao Índio. Exonerado, retornaria depois ao trabalho, dividindo o seu tempo entre a selva, o Rio de Janeiro, Brasília e os congressos internacionais. No final da vida, entretanto, já se deixava torturar pela dúvida: ao longo de vinte anos lutando contra a fome, a miséria e o genocídio, percebia que jogara grãos de areia num deserto. Bem mais amplas eram as causas dos males que insistia em combater.

Peregrino sem casa e sem tenda fixa numa terra estranha que acabou fazendo sua, e que amou a ponto de sacrificar-lhe a vida, esse misto de herói e santo foi, sem dúvida, uma legenda em sua época. Por isso, é no mínimo esclarecedora descoberta: a de que, mesmo na adversidade, é possível construir. O esforço humano não passaria da soma do esforço e da renúncia dos indivíduos que se imolam.

Mas apesar de Noel Nutels, dos irmãos Villas-Boas, de Rondon, de dezenas ou centenas de outros heróis que a história não registra, desapareceram no país, em sessenta anos, 96 nações indígenas. O nordestino continua nas malhas da miséria e da doença. O trabalho desses visionários é ocasional – as distorções sociais e o crime parecem permanentes. Nutels sabia disso quando se calou ao ouvir, cheio de amargura, o desabafo de Maluah, chefe de uma tribo moribunda: “O seu povo trouxe para o meu uma doença que faz emagrecer, tossir e cuspir sangue”. Tal frase deve ter sido particularmente dura para quem, na tenra infância em Ananiev, na Rússia, assistira à matança de judeus, também uma minoria racial. Antes de morrer, tomado pela estafa, pelas malárias sucessivas e pelo câncer, ele haveria de perceber que a redenção do homem não estava tão perto quanto às vezes chegara a imaginar. Outros haveriam de mirar o seu exemplo e concluir que a história dessa redenção só será possível com a multiplicação, ao longo dos tempos, dessas trajetórias de renúncia e grandeza.

(Fonte: Veja, 3 de maio de 1978 – Edição n° 504 – O ÍNDIO COR-DE-ROSA – EVOCAÇÃO DE NOEL NUTELS, de Orígenes Lessa – LITERATURA/ Por Luiz Fernando Emediato – Pág; 110)

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