Gilberto Dupas, engenheiro, escritor e cientista social que se notabilizou por uma intensa atividade intelectual e por assessorar governos tucanos.
Dupas havia lançado, em 2008, o romance O Incidente, seu segundo livro de ficção.
Seu último livro, O Incidente, lançado no fim de 2008, fala de turistas latino-americanos que ficam presos no topo de uma montanha por conta de uma forte nevasca e que, obrigados a passar a noite numa cabana, acabam contando histórias pessoais para depois partir, incógnitos como embarcaram na viagem, mas certos de que algo mudou para sempre.
Foi a metáfora que o analista político, economista e colaborador do Estado Gilberto Dupas escolheu para deixar este mundo, dia 17 de fevereiro de 2009, aos 66 anos, vítima de um prolongado câncer no pâncreas e de um acidente vascular cerebral.
Com tantos livros sobre globalização, ética, poder e conflitos internacionais, Dupas preferiu deixar sua última mensagem num pequeno livro de ficção – o segundo de sua carreira, depois do romance Retalhos de Jonas (Paz e Terra, 2001).
Compreensível. Os últimos acontecimentos não deixaram muitas brechas para respirar no mundo real. A história dos outros surge, então, como alternativa ao salve-se quem puder da globalização, sugere em seu livro Dupas, sepultado no cemitério Gethsemani.
A morte interrompe, assim, o que seria uma promissora carreira literária, não fosse Dupas já reconhecido como um dos mais lúcidos estudiosos do turbocapitalismo e seus efeitos nefastos. A literatura era para ele seu “pequeno refúgio sereno”, o porto seguro onde encontrou a solução para alguns enigmas do mundo contemporâneo. Em O Incidente, após confessar seus mais profundos medos e obsessões na escuridão, os turistas acidentais viram novamente rostos anônimos à luz do dia, recompondo-se do desconforto de suas revelações íntimas.
Entre todos os relatos de O Incidente, destaca-se o de um narrador da classe média que batalhou para ter uma vida confortável e vive o conflito de ser representante da elite num país de deserdados. É possível identificar nesse narrador o desconforto de um homem da esquerda como Dupas, que, na juventude, lutou contra a ditadura militar e, maduro, aos 39 anos, aceitou o cargo de presidente de uma empresa de papel e celulose, para em seguida ocupar altos postos no governo Franco Montoro – ele foi vice-presidente do Banespa, presidente da Caixa Econômica Estadual e secretário de Agricultura e Abastecimento.
Nascido em Campinas em 1943, Gilberto Dupas foi talhado para assumir o papel de líder desde que foi admitido na Escola Politécnica da USP, aos 19 anos. Dois anos antes do golpe militar, escolhido como representante do centro acadêmico, envolveu-se nos movimentos políticos que defendiam o diálogo interclassista com operários e trabalhadores rurais – mais especificamente, com a chamada esquerda católica, que se transformou na Ação Popular (organização clandestina que lutou contra a repressão até 1973). Logo cedo percebeu que seu caminho não seria o de construir pontes de concreto, mas pontes sociais, o que o levou da Engenharia para a Economia, formando com amigos um grupo de estudos em busca de teorias de desenvolvimento.
Formado, Dupas optou por projetos governamentais como o de Desenvolvimento Integrado do Vale do Taquari-Antas, financiado por agências internacionais, antes de assumir o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) do Ministério do Planejamento, isso em1968, ano em que todos viveram em perigo por conta do AI-5, que permitia ao governo decretar recesso legislativo e suspender os direitos políticos dos cidadãos. O grupo de Dupas era literalmente do barulho – a economista Conceição Tavares vociferava ao lado de Arhur Candau, mas todos tinham de pisar em ovos para concretizar projetos públicos importantes que só poderiam sair com paciência e bom senso.
Dupas conseguiu até atravessar o governo Médici para se tornar o representante do Ipea junto ao Banco Mundial, em 1970. Quando a área de Planejamento do Ipea foi para Brasília, o economista preferiu deixar o instituto e aceitar a oferta de reorganizar um banco – logo ele, que, a despeito da inexperiência na área, chegou a dirigir dois outros bancos, acumulando experiência para escrever posteriormente sobre as contradições do sistema capitalista. E ele escreveu bastante: foram 10 livros seus e outros 30 coordenados por ele, além de 700 artigos sobre economia, política e filosofia, escritos entre 1983 e esta semana (leia seu último texto no Estado desta quarta-feira).
Nesse derradeiro artigo, Dupas faz um alerta sobre a natureza pós-humana forjada por defensores do biocapital, que promete a imortalidade a endinheirados dispostos a virar ciborgues. É bom que se preste atenção à profecia desse homem que recusou terapias invasivas, preferindo a morte. O dom visionário de Dupas era tão evidente que, em 1997, ele já alertava para uma profunda alteração no mercado de trabalho não só por causa da globalização e da automação, mas pela perversa ação dos “corporate killers”, que se orgulhavam de ajustar a estrutura de suas corporações à custa da dispensa de pessoal.
Bem antes do atual colapso das bolsas e da implosão dos bancos, o economista já assumia o papel de arauto – e não só na área econômica, como comprovam seus livros em que a exclusão social no mundo globalizado é analisada a fundo (Ética e Poder na Sociedade da Informação, publicado há nove anos pela Unesp é um deles). Como um extemporâneo renascentista, Dupas se interessou por tudo o que era humano, da ciência pós-moderna como instrumento da disputa das capacidades produtivas do Estado-nação à nanotecnologia, criadoras de monstros. Morre o profeta. Fica sua obra.
(Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae- NOTÍCIAS / Por Antonio Gonçalves Filho, de O Estado de S. Paulo – 17 de fevereiro de 2009)
Democracia e serviços públicos – Gilberto Dupas (artigo de 17/01/2009)