René Cassin (Baiona, 5 de outubro de 1887 Paris, 20 de fevereiro de 1976), um dos construtores da Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU.
Não haverá paz sobre este planeta enquanto os direitos humanos forem violados em alguma parte do mundo”, disse o jurista francês René Cassin ao
ser anunciada sua nomeação para o Prêmio Nobel da Paz em 1968. Através dele, a contribuição essencial da França residiu na humanidade e na
universalidade desse texto histórico.
Foi em Paris, no Palácio de Chaillot, que a
Assembleia Geral das Nações Unidas votou, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem. Esse fato não é sem importância. O mundo prestava, assim, homenagem à “pátria dos direitos humanos ” e aos esforços que ela havia empreendido, em grande parte graças à atuação de René Cassin, na elaboração de um texto que, depois dos crimes da Alemanha nazista, devia permitir à humanidade retomar seu controle através de alguns conceitos fundamentais reunidos no” primeiro manifesto (…), primeiro movimento de ordem ética jamais adotado pela humanidade
organizada¹”.
A ideia de que a salvação da humanidade está no respeito e na proteção aos direitos humanos já havia sido enunciada no final do século XVII na Inglaterra (Habeas Corpus, Bill of Rights) e também nos Estados Unidos, por ocasião da
Declaração da Independência. Mas, enquanto a declaração americana expressa antes de tudo uma vontade de descolonização e independência
nacional, a declaração francesa de 1789 comporta uma dimensão mais universal, já que ela propõe libertar, não os franceses de uma potência
estrangeira, mas o próprio ser humano de qualquer servidão e em particular o cidadão francês do absolutismo.
Depois dos terríveis massacres da Primeira Guerra Mundial, a humanidade, é verdade, já havia tentado organizar-se de uma vez por todas. Pensava-se na época que para alcançar-se uma paz definitiva bastava cortar as garras do
pangermanismo, fazer a Alemanha pagar as reparações dos prejuízos de guerra e instituir acordos internacionais garantidos por uma Sociedade das Nações criada com esse fim.
Mas essa paz contratual, assinada apenas entre governos efêmeros e não entre povos2, ” garantida ” por uma organização desprovida de poderes verdadeiros de intervenção, cuja universalidade deixava muito a desejar
(preocupados em salvaguardar sua neutralidade baseada no respeito a um protecionismo altivo, os Estados Unidos haviam, de fato, enunciado a fazer
parte dela), e que deixava intacta a doutrina da preeminência da soberania dos países, revelou-se incapaz de resistir às invectivas dos totalitarismos nascentes. A execução, por estes últimos, de políticas de expansão e de conquista, e a promulgação, particularmente na Alemanha nazista, das leis racistas e anti-semitas, obrigavam a pensar que, se por uma desventura uma outra guerra mundial eclodisse, seria uma guerra a ser feita não apenas contra o imperialismo, mas também contra doutrinas visceralmente opostas à democracia e à universalidade dos direitos humanos.
A concepção francesa como herança
A Declaração de 1948 inscreve-se na linha direta da de 1789, cujos princípios mais universais (liberdade, igualdade, fraternidade) serão mantidos, graças a René Cassin, no artigoprimeiro do texto de 1948: “Todos os sereshumanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir uns em relação aos outros dentro de um espírito de fraternidade”. Da mesma forma, a Declaração de 1789 proclamava que “a ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos humanos são as únicas causas das adversidades públicas e da corrupção dos governos”. Esse princípio fundador será quase que textualmente reproduzido no texto de 1948, onde está escrito que “o desconhecimento e o desprezo aos direitos humanos levaram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade…”.
Esses princípios políticos, agora complementados pelos direitos econômicos, sociais e culturais desde a adoção, em 1966, de um pacto nesse sentido, figuram no projeto da ” Declaração Universal dos Direitos do Homem”, elaborado pela França e apresentado às Nações Unidas em 10 de abril de 1948. Esse texto era fruto dos trabalhos da Comissão Consultiva dos Direitos Humanos, criada em Paris em 1947 pelo governo francês, sob proposta de René Cassin. Presidida por este último, essa comissão, da qual viria a nascer a
Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos, era essencialmente composta de juristas e diplomatas; ela era encarregada de preparar as
instruções destinadas à delegação francesa nas Nações Unidas, a qual era dirigida por… René Cassin.
Uma das melhores iniciativas tomadas pela França, para participar da redação da Declaração, foi provavelmente a de escolher esse “utopista pragmático”, que era na ocasião vice-presidente do Conselho de Estado. Com efeito, René Cassin acrescentava a essa missão não apenas suas qualidades de jurista renomado (ele fora o mentor da lei sobre os direitos à reparação para as vítimas da Primeira Guerra Mundial e, em 1940, o redator dos Acordos Churchill-de Gaulle, que deviam dar uma base jurídica e internacional à França livre), mas também sua longa prática de defesa dos direitos humanos já que, desde o advento do fascismo e do nazismo, ele havia redigido inúmeros textos revelando a necessidade, diante destes, de se basear a paz, a partir de então,
na proteção aos direitos humanos.
No início de 1946, René Cassin chega a Nova York para representar a França na Comissão dos Direitos do Homem, presidida por Eleanor Roosevel. Eles haviam se conhecido em abril de 1942 em Londres, para onde o presidente dos Estados Unidos enviara a esposa com o objetivo de manter elevado o moral dos ingleses. A Srª Roosevelt pôde apreciar na ocasião não somente as qualidades de militante apaixonado, mas também de ” criador do direito ” que René Cassin possuía. Assim, ela o recebe com uma indisfarçável satisfação, pede-lhe que assuma a vice-presidência da Comissão e que redija, com base em documentos preparados pela secretaria das Nações Unidas, sob a direção do professor canadense Humphrey, um anteprojeto de Declaração.
Esse texto, em 45 artigos, será apresentado à Comissão em 16 de junho de 1947 e servirá de base para discussão até a adoção da versão definitiva.
Quando se realiza um estudo comparado dos dois textos, percebe-se com surpresa que a maior parte dos conceitos emitidos no final já faz parte do anteprojeto e que, em muitos aspectos, este é ainda mais audacioso, especialmente na afirmação da universalidade dos direitos humanos, do que o texto final.
É principalmente no sentido dessa idéia de universalidade que se exerce a maior influência da França e de René Cassin a quem se deve a aprovação da referência a “direitos diretamente universais” (ou seja que só podem ser garantidos por uma instância supranacional como por exemplo as próprias Nações Unidas). Mas, o que dava mais orgulho a René Cassin era ter conseguido (com o apoio dos soviéticos e contra a posição dos Estados Unidos, que obrigaram Eleanor Roosevelt a votar contra) fazer admitir que os direitos econômicos, sociais e culturais deveriam passar a ser considerados como direitos fundamentais, indissoluvelmente ligados aos direitos civis e políticos.
O papel piloto de Eleanor Roosevelt
A influência da presidenta da Comissão, Eleanor Roosevelt, foi de uma outra natureza. Essa mulher extremamente culta, que, para grande satisfação de René Cassin, falava admiravelmente bem o francês ela foi a aliada objetiva deste último para impor a sua utilização oficial junto com o inglês , conseguiu introduzir princípios em favor da igualdade homem-mulher durante os trabalhos (em especial com a noção pioneira de “a trabalho igual, salário igual”), mas também dar ao texto, graças a seu espírito de síntese e seu senso das realidades, o poder concreto e a clareza que possui.
Foi também René Cassin que, durante a fase final das negociações, conseguiu fazer com que o próprio título da Declaração fosse modificado, e que este fosse qualificado a partir de então de “universal”, e não mais apenas “internacional”. Essa era uma maneira de fazer com que o indivíduo entrasse diretamente no campo do direito internacional e de ligar diretamente a Declaração ao conceito fundador da Carta das Nações Unidas, que começava com “Nós, Povos das Nações Unidas…” fórmula que Cassin havia colocado no início de seu anteprojeto, mas que os países, naquele início de guerra fria, recusaram-se a conservar, com o objetivo de manter intacta a sua soberania.
Os redatores da Declaração de 1948, Eleanor Roosevelt e René Cassin à frente, sabiam bem que o ponto sensível era a ” não ingerência nos assuntos internos dos países “, base do sistema da ONU. Porque não se podia falar ao mesmo tempo da universalidade dos direitos humanos e deixar a sua proteção sob a responsabilidade única de países soberanos que, a exemplo de Goebbels, ministro da Informação e da Propaganda do regime nazista, poderiam a qualquer momento ” fazer o que quisessem com seus comunistas e judeus”.
Aqueles que, como René Cassin, haviam pensado que uma simples declaração só poderia representar, no caminho da futura Carta dos Direitos do Homem, a primeira parte de um tríptico compreendendo também os pactos e as medidas de aplicação indispensáveis a sua aplicação, tiveram no final das contas que se considerar felizes por novas ” Tábuas da Lei Humana2 ” serem adotadas depois de apenas dezoito meses de trabalho. No entender de Cassin, isto era melhor do que nada sobretudo se se ficasse sabendo a posteriori que seria necessário esperar dezoito anos para que os pactos fossem redigidos e adotados (1966) e meio século para que se começasse finalmente a estudar a criação de uma corte Criminal Internacional Permanente (1900).
São raros os textos internacionais em que se pode perceber, a esse ponto, a contribuição individual de personalidades como Eleanor Roosevelt ou René Cassin. Os textos posteriores serão redigidos de maneira mais anônima, por comissões de especialistas. O sopro universal da Declaração de 1948, sua força moral, sua clareza também na expressão dos grandes princípios, sua preocupação constante com o sofrimento individual, vêm provavelmente do fato de terem sido pessoas, e não apenas Estados, que presidiram sua redação. O
papel essencial da França e de René Cassin terá sido talvez o de contribuir com essa parcela de humanidade, que constitui a verdadeira universalidade do texto das Nações Unidas.
(Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu – Marc Agi)
Marc Agi
Membro da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos e Diretor Geral da Fundação da Arca da Fraternidade
Marc Agi é o autor de René Cassin, père de la Déclaration universelle des droits de l”Homme, (René Cassin, pai da Declaração Universal dos Direitos do Homem) Livraria Acadêmica Perrin, Paris, 1998.
1. Declaração de René Cassin perante a Comissão dos Direitos Humanos no início de fevereiro de 1947
2. A Carta das Nações Unidas, adotada em São Francisco em 1945, começa com a famosa fórmula “Nós, povos das Nações Unidas…”
O membro do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos da ONU, o francês René Cassin, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1968, declarou em Nova York não ser um moralista que espera reformar o homem primeiro para conseguir a paz depois: Devemos trabalhar, disse, para mudar as condições resultantes do fato de o homem nem sempre ser bom. Para dar o exemplo, René Cassin vai doar os 70 000 dólares do Prêmio Nobel à própria ONU, para campanhas pelos direitos do homem.
(Fonte: Veja, 16 de outubro de 1968 Edição nº 6 GENTE Pág; 54)
Quando recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1968, Cassin declarou que gostaria de tê-lo dividido com “o brasileiro Austregésilo de Athayde”.
(Fonte: Veja, 22 de setembro de 1993 – ANO 26 – Nº38 – Edição nº 1306 – MEMÓRIA – Pág; 127)