Duro de matar
Guevara, o mito de esquerda que sobreviveu ao fim do comunismo
Ernesto Guevara de la Serna (Rosário, 14 de junho de 1928 – La Higuera, 9 de outubro de 1967), o revolucionário Che. Um dos mais intrigantes personagens da política internacional no pós-guerra.
Vitorioso em Cuba, como número 2 de uma revolução que chegou a ser vista como modelo para a América que mora abaixo do Rio Grande, a partir de então Che foi um grande colecionador de derrotas. Tentou criar um embrião de guerrilheiros em seu país natal, a Argentina, mas não deu em nada. Sua participação na guerrilha do Congo, em 1965, acabou em fiasco, com Che e sua equipe fugindo de barco. Em outubro de 1967, à frente de uns poucos gatos-pingados que conseguiu reunir em torno de um certo Exército de Libertação Nacional que não seduzia sequer os membros do Partido Comunista da Bolívia, ele morreu executado, depois de ter sido capturado em La Higuera, região a 450 quilômetros de La Paz. Morto e enterrado, Che seguiu perdendo.
O comunismo, que Che enxergava como uma etapa tão inevitável da evolução humana como o costume de andar sobre os dois pés, tornou-se lembrança que se visita em museu. Enquanto Fidel Castro abandonou o charuto e trocou o uniforme militar por ternos feitos sob medida, a revolução cubana transformou-se num desastre geral, em que à falta de liberdade se somam carências típicas de país pobre. Como se dizia nas assembleias dos anos 60: se sente, se sente, Ernesto Guevara está presente.
No período entre 1953 e 1956, Guevara conheceu vários países da América Latina. Até essa viagem, Ernesto Guevara era um estudante de medicina rebelde, primogênito de uma família boêmia, sem dinheiro mas apegada às aparências aristocráticas – os assuntos políticos não tinham prioridade em sua agenda.
Ao testemunhar a miséria dos países que visitou, bem mais atrasados do que a Argentina, Che começou a mudar sua postura. Ele já lia autores clássicos da esquerda, mas os trechos do diário revelados mostram que era um autodidata incansável, mais voluntarioso do que sofisticado.
A vida do revolucionário e a guerrilha cubana em Sierra Maestra.
Em 1964, quando voltou de sua experiência revolucionária fracassada na Argentina, as divergências entre Che e Fidel se acirraram e logo depois ele deixaria Cuba para voltar apenas uma vez, numa visita rápida e clandestina quando estava a caminho da Bolívia – encontrou a mulher, mas, para os filhos, com quem mal convivia, apresentou-se disfarçado, dizendo que era um tio.
As divergências entre Fidel e Che nessa época, deixa claro que, depois de fazer o célebre discurso em Argel, onde disse que o “Kremlin era cúmplice do imperialismo”, Guevara traçou uma fronteira corajosa entre suas ideias e a montanha de subsídios que a União Soviética oferecia a Cuba em troca de sua subserviência.
É possível que isso talvez não fosse claro nem para Guevara – o que foram suas simpatias com as ideias de Mao Tsé-tung, que na época aquecia os motores da revolução cultural chinesa.
Pode-se supor que o teor das conversas reservadas que Fidel e Che tiveram no período que antecedeu à partida definitiva de Guevara de Cuba provavelmente vai morrer com Fidel Castro.
A trajetória da vida de Guevara demonstram um líder político autoritário, adepto da violência para a solução de conflitos políticos – foi dele o primeiro tiro num caso de justiçamento ainda nos acampamentos guerrilheiros, e também foi sob seu comando que em quatro meses os tribunais revolucionários condenaram à morte cinco centenas de adversários do novo regime.
Uma visão superficial do peronismo na vida cotidiana dos argentinos, não oferece nenhum ângulo original para entender Fidel Castro e também não resiste a traçar um perfil de Guevara que o deixa muito próximo dos heróis românticos, idealistas desinteressados, dispostos a todos os sacrifícios – virtudes que compõem o mito Guevara, mas insuficientes para explicar quem foi a pessoa de carne e osso. Para ajudar a manter essa aura, Che segue sendo, um cadáver misterioso. Anos após sua morte, seus restos nunca foram encontrados.
(Fonte: Veja, 11 de junho de 1997 – ANO 30 – N° 23 – Edição 1 499 – LIVROS/ Por Fernanda Scalzo – Pág; 130/131)
CHE GUEVARA: O GRANDE GUERRILHEIRO COMUNISTA
Ele passou a vida inteira abandonando família e amigos para fazer revoluções.
Em 1956, ele ainda não se tornara um mito. Era apenas um rapaz com a cabeça cheia de ideais e um enorme espírito de aventura pulsando nas veias. Antes de embarcar para Cuba, onde faria a revolução, escreveu uma carta amorosa endereçada à mãe, na Argentina: “Agora vem a parte mais difícil, velha, aquela da qual nunca fugi e sempre gostei”. E emendou com as seguintes palavras, na tentativa de tranquiliza-la: “Os céus não ficaram negros, as constelações não saíram de suas órbitas, nem houve enchentes ou furacões insolentes. Os signos são bons. Eles indicam a vitória”.
Ao receber a correspondência, Celia de La Serna reconheceu o colorido de sempre na escrita do filho. Era próprio dele aquele tipo de frase bem elaborada e o estilo fluente, sonoro, aprendido na leitura dos muitos poetas que ela mesma havia lhe apresentado alguns anos antes. Mas Celia tinha motivos de sobra para temer pela sorte do rapaz.
Guevara sempre tivera a saúde frágil. Nascido com apenas oito meses de gestação, aos dois anos de idade já sofria com acessos incontroláveis de asma. Por isso, crescera em meio aos livros, recolhido à nada modesta biblioteca familiar, de mais de 3 mil volumes. Em vez de acompanhar os colegas de bairro e colégio nas costumeiras brincadeiras infantis de correr, pular, saltar, tornara-se um ávido leitor de poesia e romances. Durante muitos anos, sequer pôde ir à escola. Nesse período, foi a mãe quem se encarregou pessoalmente da instrução do garoto.
Estilo grunge
Nascido no dia 14 de junho de 1928, em Rosário, na Argentina, Ernesto Guevara Lynch de La Serna vinha de uma família que não era pobre, embora precisasse fazer algum esforço para equilibrar o orçamento. Seu pai, Ernesto Guevara Lynch, viu naufragar sucessivas tentativas de montar o próprio negócio. E a mãe, quando não estava educando os cinco filhos, era feminista, socialista e anticlerical.
Depois de crescido, Guevara tornou-se um rapaz de aparência eternamente descuidada. Andava com o cabelo sempre despenteado, os sapatos desamarrados, a camisa meio suja. “O homem que cativaria milhões com o encanto do olhar, do sorriso e dos gestos, nunca se esmerou em cuidar de sua vestimenta”, reconheceria o escritor Jorge Castañeda, autor de Guevara: A Vida em Vermelho. Como não trocava muito de roupa e passava dias seguidos sem tomar um único banho, na juventude, chegou a receber o apelido pouco lisonjeiro de chancho, porco em espanhol.
Por outro lado, Ernesto buscava superar o problema de saúde com ousadas demonstrações de arroubo pessoal. Para vencer as próprias limitações, tendo sempre à mão a bombinha contra ataques de falta de ar, começou a jogar rúgbi e dedicar-se intensamente à equitação e ao alpinismo.
No final de 1951, aos 23 anos, Guevara e um colega de faculdade de Medicina, Alberto Granado, iniciaram uma viagem de moto pela América do Sul. Com uma Norton de 500 cilindradas, percorreram mais de 13 mil quilômetros, da Argentina até a Venezuela. Foi durante essa odisseia que se deu a definitiva conversão política de Ernesto.
Na Guatemala, passou por apertos financeiros e conheceu Hilda Gadea, uma militante socialista de traços indígenas, que pouco tempo depois lhe daria uma filha. “Hilda tem um coração de platina. Sinto seu apoio em todos os atos de minha vida diária (a começar pelo aluguel)”, confidenciou em carta aos pais. Foi mais ou menos nessa época que ele ganhou o apelido que incorporaria ao nome: Che, a expressão coloquial argentina para companheiro (é a mesma que o tchê gaúcho), que ele não cansava de repetir, em suas conversas com os amigos centro-americanos.
Quando o presidente Guzmán foi derrubado por um golpe financiado pelos Estados Unidos, Ernesto Che Guevara buscou refúgio no México. Lá conheceria os irmãos cubanos Fidel e Raúl Castro, que conspiravam no exílio para depor a ditadura de Fulgêncio Batista. “É um acontecimento político ter conhecido Fidel Castro, o revolucionário cubano”, anotou no diário. “Ele é jovem, inteligente, seguro de si e tem uma audácia extraordinária. Penso que simpatizamos um com o outro”. Che ofereceu seus serviços de médico aos guerrilheiros. Mais tarde, no calor dos combates de Sierra Maestra, revelaria-se um líder entre eles. O mito começava, pouco a pouco, a tomar forma.
Tipo exportação
“É preciso endurecer, mas sem perder a ternura, jamais” diz a mais célebre de todas as frases atribuídas a Che Guevara. Bonito, mas pouco aplicável numa guerra de verdade, como foi a Revolução Cubana. Durante a guerrilha, traições e deserções eram punidas com a morte. Che era um dos mais rigorosos na aplicação de penas capitais aos companheiros que colaboravam com o inimigo. Um deles, Eutimio Guerra, informava ao Exército de Fulgêncio Batista a localização de destacamentos rebeldes nas montanhas. Foi executado pelo próprio Guevara, durante um violento temporal no meio da mata.
Assim que a ditadura de Batista foi deposta, em 1959, Ernesto assumiu a direção do Banco Nacional de Cuba. Depois, em 1961, virou ministro da Indústria. Divorciado de Hilda Gadea, casaria com uma integrante do movimento revolucionário, Aleida March, com quem teria mais quatro filhos.
Mas, àquela altura dos acontecimentos, tornara-se impossível para Che Guevara permanecer como simples burocrata do novo regime. Ele queria exportar a revolução, testar na prática as teorias sobre guerra de guerrilha que havia elaborado nos anos de combate em solo cubano.
No final de 1965, Che simplesmente desapareceu do mapa. O mundo só voltaria a ouvir falar dele dois anos mais tarde: estava na Bolívia, fomentando uma revolta armada contra o governo local. Antes, estivera clandestinamente no Congo, tentando organizar uma guerrilha no coração do continente africano. Nos dois casos, o herói da Revolução Cubana fracassou. Em outubro de 1967, Guevara seria capturado por soldados bolivianos. Por orientação da CIA, foi executado no dia seguinte, com uma rajada de metralhadora e um tiro de misericórdia.
Logo houve quem enxergasse uma semelhança assombrosa entre a fotografia do cadáver de Che, deitado sem camisa, de olhos dramaticamente abertos, e o quadro Lamentações sobre o Cristo Morto, do pintor renascentista Andrea Mantegna. O Exército boliviano, sem querer, havia dado ao mundo a imagem de um mártir, um Cristo guerrilheiro assassinado muito jovem, com apenas 39 anos, e imolado por defender suas crenças até o último suspiro.
(Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia- NOTÍCIAS / HISTÓRIA / NOTÍCIAS / PERSONAGEM / Por LIRA NETO – 14/06/2019)