É considerado o primeiro grande dramaturgo português
Gil Vicente (Guimarães, Portugal, 1465 – Évora, Portugal, 1536), considerado ainda hoje o maior nome do teatro português, também escreveu peças em castelhano.
Dos 42 textos que levou ao palco em 34 anos de carreira, consta que pelo menos onze teriam sido redigidos em espanhol – entre eles, o Auto da Sibila Cassandra, com data provável de 1513, essa nona peça do dramaturgo não alcançou a notoriedade de alguns de seus outros trabalhos, como o Auto da Barca do Inferno (1517). Trata-se, contudo, de uma obra surpreendente, cuja mistura de personagens da Bíblia e da mitologia grega soa moderna.
O que chama atenção no texto é o modo original com que Gil Vicente explora os limites de um dos gêneros mais tradicionais do teatro ibérico, o auto natalino.
Tendo em sua perspectiva o nascimento de Cristo, o dramaturgo põe em cena uma engenhosa mistura de tempo e espaço, trazendo à tona a discussão de temas como a condição da mulher.
Para tanto, Gil Vicente resgata da mitologia grega a personagem Cassandra, profetisa (sibila) que arrastava uma maldição: ninguém punha fé em seus vaticínios.
Os troianos, não lhe deram ouvidos quando ela advertiu que não deviam aceitar o cavalo de madeira que os gregos haviam lhes presentado – dentro do qual se escondiam soldados.
A Cassandra de Gil Vicente repele com veemência as investidas do rei bíblico Salomão, interessado em desposá-la.
Gil Vicente não perde a oportunidade de pôr em xeque uma série de convenções morais e estéticas de seu tempo. Protegido pela rainha dona Leonor, o teatrólogo, ao longo de sua obra, não poupou críticas à sociedade portuguesa.
Vê-lo, entretanto, como mero cronista de uma época é reduzir seu talento. Escritor de transição entre o período medieval e o Renascimento, assombrado pela religiosidade e pelo humanismo, Gil Vicente armou seu Auto da Sibila Cassandra com recursos estruturais que lhe dão o tom de atualidade.
É isso que explica a sua permanência, depois de quase cinco séculos em que foi visto pela primeira vez.
(Fonte: Veja, 20 de fevereiro, 2008 Ano 41 N° 7 Edição 2048 LIVROS/ Por Rinaldo Gama Pág: 136)