Carlos Medeiros Silva (Juiz de Fora, 19 de junho de 1907 – Leblon, Rio de Janeiro, 3 de março de 1983), um dos juristas mais influentes dentre aqueles que contribuíram para conferir roupagem legal ao regime de exceção estabelecido entre 1964 e 1985, que ficou conhecido por ter redigido, em coautoria com seu mentor Francisco Campos, o Ato Institucional n.º 1, que inaugurou oficialmente a ditadura militar brasileira, promulgado em 09 de abril de 1964.
De datilógrafo da Constituição “Polaca” de 1937, elaborada por Campos, o “Chico Ciência”, o jurista mineiro se tornou ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) já em 1965, preenchendo a vaga criada pelo AI-2 (Ato Institucional nº 2) – que ampliou o número de ministros do Supremo de 11 para 16, com vistas a obter maior controle sobre o órgão máximo do Poder Judiciário.
O trabalho de Medeiros no STF foi interrompido por um chamado do Marechal-Presidente Humberto de Alencar Castello Branco, que o escolheu para a pasta da Justiça e Negócios Interiores, permanecendo no cargo de 1966 a 1967. Ao substituir Milton Campos e Mem de Sá (tidos como muito “liberais” para o Ministério da Justiça do novo regime ditatorial), recebeu como missão constitucionalizar os atos institucionais e fornecer ao novo regime a aparência legal de uma normalidade democrática forte e “renovada”, utopicamente apostando, com isso, encerrar o ciclo “revolucionário”.
O jurista mineiro também elaborou o projeto de Constituição em 1966, mas seu texto foi tido como demasiadamente autocrático até mesmo pelos congressistas golpistas. No entanto, a exigência do AI-4, de concluir a Carta no prazo exíguo de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, obrigou os constituintes da ditadura militar a buscarem uma solução incomum para fazer alterações no texto de Medeiros: atrasar em 12 horas o relógio do Congresso Nacional.
Defesa dos AIs
Antes de galgar os cargos de ministro do STF e de ministro da Justiça, Carlos Medeiros já prestava “esclarecimentos” à dita grande imprensa sobre o sentido e teor do primeiro Ato Institucional “revolucionário”.
Em 11 de abril de 1964, o jurista conferenciou ao jornal O Globo que, “sem o Ato Institucional, não teria havido uma revolução, mas um golpe de Estado”, proclamando que o AI-1 constituiu-se adequadamente como “o veículo da revolução para interceptar um processo de dissolução do poder e do governo, que se processava rapidamente”. Em 30 de abril daquele ano, na Confederação Nacional do Comércio no Rio de Janeiro, Carlos Medeiros caracterizou o primeiro Ato da ditadura como “uma lei constitucional temporária”, apostando precocemente que a norma editada pelo Comando Supremo da Revolução vigoraria até o termo nela prefixado, a saber: 31 de janeiro de 1966. Ao contrário dos prognósticos de Medeiros, a ditadura instaurada pelo golpe de 1964 postergou-se por mais 21 anos, deixando à Nova República de 1985 um legado de abismo social e concentração de renda.
No final do mês de abril de 1964, naquela mesma ocasião, o jurista sustentou a necessidade de “melhor separar o joio do trigo”, preocupando-se, junto às classes patronais, com a precariedade do expurgo de elementos “subversivos e corruptos” realizado até aquele momento. Aconselhava assim, urgentemente, para a necessidade de uma legislação adequada à repressão dos crimes contra o Estado e seu patrimônio, supostamente cometidos pelo governo João Goulart, bem como de atos da chamada “guerra revolucionária”, buscando legalizar os execráveis expurgos operacionalizados por coronéis (alguns retirados da reserva) a serviço do novo regime.
A publicação de atos institucionais estava apenas começando (foram 17, ao todo). Em 1965, Carlos Medeiros teve a oportunidade de sustentar, em sessão de julgamento do STF, que a natureza do AI-2 era de “um ato de emergência, um ato constitucional, que tem uma inspiração revolucionária”, contrapondo-se assim ao ministro Evandro Lins, que denunciava, então, o alargamento na utilização de atos institucionais em detrimento das garantias da parcialmente revogada Constituição de 1946. Não por acaso, Evandro Lins foi cassado posteriormente com base no AI-5.
Outro ministro do STF também cassado pelo AI-5 é Vitor Nunes Leal, autor do clássico Coronelismo, enxada e voto e cuja trajetória pessoal se entrecruza com a da família de Carlos Medeiros Silva. É justamente Nunes Leal quem revela que “colegas mais íntimos às vezes o chamavam, afavelmente, ‘Robespierre’, sob os seus mais veementes protestos”. O “Robespierre mineiro” havia “estado longamente no segredo e na intimidade dos grandes acontecimentos nacionais”, vivenciando toda uma “existência que se desdobrava nas altas esferas do Estado” e participando “pessoalmente da embriagante tarefa de fazer a história”.
Ainda conforme indiscreta crítica de Nunes Leal, endereçada a Medeiros na despedida deste do Supremo para assumir o Ministério da Justiça, o jurista mineiro de fato “aprendeu a pressionar as molas do poder, e é bem provável que o gosto desse vinho do Olimpo não lhe tenha desagradado. Acho mesmo que uma das perguntas mais bem avisadas que ocorreria a um Presidente no justo momento de assumir o governo seria esta: ‘Onde está o Carlos Medeiros?’”.
São tantas as leis, decretos-leis e decretos com a marca da sua autoria ou da sua preponderante elaboração que mesmo V. Exa. terá perdido a conta. Se tivéssemos o hábito norte-americano de lhes dar o nome do proponente, um leitor desavisado pensaria que vivemos em regime monárquico, pois seria preciso dizer LEI Carlos I, Carlos II, Carlos XX, Carlos XXX, e assim por diante, numa longa dinastia numérica a invadir a casa das centenas (Nunes Leal)
A respeito da Constituição de 1967, o jurista Pontes de Miranda observou que, apesar dos arrogados propósitos “revolucionários”, “na Constituição de 1967 há mais subservidade do que revolucionaridade”. “Não se avança para o futuro, como seria de mister, sabiamente”.
Em suas Memórias: A verdade de um revolucionário, o deflagrador do golpe de 1964 Olympio Mourão Filho, embora elogiando o “nietzschiano” Francisco Campos que tinha “o vício do totalitarismo”, lamentava, porém, que ele tivesse deixado “um filho que não tem suas faculdades e cultura”. Referindo-se a Carlos Medeiros Silva, pontuava: “autor da Constituição de 1967 e da Lei de Segurança, a célebre 314, que define a mentalidade dominante no Brasil: só se combate o comunismo com a repressão cada vez mais forte”.
De modo contrário ao general, entretanto, Carlos Medeiros orgulhosamente reivindicava a autoria do preceito constitucional que tornara responsável pela Segurança Nacional toda e qualquer pessoa natural ou jurídica diante do Estado, estampado na Lei de Segurança Nacional de 1967, apostando ainda na “renovação constitucionalista” iniciada em 1964, apta a libertar “os poderes políticos da nação de certos preconceitos constitucionais, cuja ordem remonta aos primórdios do racionalismo liberal”.
O jurista de direita embateu-se também pela criação do Estado de Emergência, que completaria os instrumentos destinados a dotar o chefe do governo dos poderes indispensáveis contra as ameaças extremistas de ruptura da ordem democrática. Amparando-se em Mirkne Guetzevitch, o mineiro indicou a chamada “racionalização do poder” como os “novos rumos do constitucionalismo” a “toda uma geração que hoje já se mostra emancipada dos preconceitos individualistas e liberais”; razão esta sempre lida e entrelida, conservadoramente, de acordo com os interesses das classes dominantes.
Eis o motivo de Carlos Medeiros defender que era preciso armar o poder de instrumentos eficazes e de ação pronta quando o equilíbrio das forças fosse ameaçado diante do “auspicioso fenômeno da ascensão das massas”, entendendo que a instituição de uma “ditadura constitucional” seria o último recurso do constitucionalismo para que a democracia pudesse sobreviver nos países ocidentais.
Na visão de mundo de Carlos Medeiros, não se deveria confundir “uma ação vigorosa e eficaz” com “poderes despóticos”, tendo em vista que “os problemas constitucionais não são primariamente problemas de direito, mas de poder”.
Na figura desse mineiro lumiar do reacionarismo, que ainda atuou como editor-chefe da Revista Forense e da Revista de Direito Administrativo, essa vocação autocrática da política do jurista caminhou umbilicalmente vinculada à advocacia privada, sempre em defesa do grande capital estrangeiro e de seus associados “nacionais”.
Advogado e estrategista do departamento jurídico da Light and Power Co., ao lado do ex-ministro da Justiça de Costa e Silva Luis Antonio da Gama e Silva, o mineiro Carlos Medeiros também participou do “bilionário réveillon da Light”, na grande negociata do último ano da década de setenta, conforme reportou à época o jornal Movimento (Edição 183, 1979). O periódico estampava a manobra da Brascan e do Estado de Segurança Nacional, em que o governo brasileiro, ao constatar os problemas financeiros da Light, premiou-a, em vez de anular a concessão, comprando a companhia por um valor muito acima do mercado. “Vergonha. Toda a história da negociata do ano. 1,3 bilhão de dólares por um ferro-velho que já era nosso. Parabéns Gama e Silva, Carlos Medeiros, M. Simonsen, advogados peritos da Light and Power Co.”, noticiava o Movimento.
No final da vida, enfim, a maior contribuição de Carlos Medeiros, simples caricatura regressiva do revolucionário burguês da França, foi ter ajudado a compor, aqui nos trópicos, em prol de sua classe, “uma estatização que até as multinacionais são a favor: a estatização dos prejuízos”.
(Fonte: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/72041- À ESPERA DA VERDADE/ Por Rodolfo Machado – 22/07/2014)