Luiz Antonio da Gama e Silva (1913-1979) talvez seja o mais duro dos “juristas de exceção” que deram base legal à ditadura militar. O feito mais notório do seu radicalismo no Ministério da Justiça foi a redação do Ato Institucional nº 5, medida que endureceu de vez a repressão política e cuja entrada em vigor completa 45 anos nesta sexta-feira (13/12). Tido como extremista demais até pela própria “linha dura” do Exército, “Gaminha”, como era conhecido, tem vasto currículo: além dos rascunhos de atos que produziu — “com forte caráter nazista”, como teria caracterizado Costa e Silva —, comandou também os expurgos de professores na USP quando foi reitor da universidade e levou para o Ministério da Justiça alguns membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Nascido em Mogi Mirim, no interior paulista, Gaminha alçou-se desde 1º de abril de 1964 como representante dos interesses “revolucionários” do grupo militar ligado ao general Costa e Silva. “Ardoroso revolucionário” com quem tinha toda intimidade “desde os tempos de conspiração em São Paulo”, conforme afirma o “durista” Jayme Portella em suas memórias A Revolução e o governo Costa e Silva, Gama e Silva foi bom amigo do “Tio Velho” da direita (pseudônimo de Costa e Silva no tempo da conspiração), conhecendo-o quando este chefiava a Região Militar em São Paulo.
Logo que o autonomeado Supremo Comando Revolucionário militar assumiu o poder em 1964, Gaminha fora designado Ministro da Justiça por Costa e Silva, acumulando também a pasta da Educação. Porém, com a ascensão do chamado “grupo da Sorbonne” e do marechal Castelo Branco à presidência, o jurista da “linha dura” foi rapidamente removido do governo.
Havendo se ligado à conspiração que depôs João Goulart da presidência da República, de acordo com René Dreifuss (1964: A conquista do Estado), Gama e Silva também se destacou como líder do Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Compondo com o jurista Miguel Reale e o economista Delfim Netto, ambos da USP, os Grupos de Estudo e Doutrina e de Trabalho e Ação daquele instituto, cujo fim exitoso foi o de desestabilizar o governo Jango, Gama e Silva integrou a diretoria da Ciesp (Centro de Indústrias do Estado de São Paulo), entidade que compartilhava membros, funções e objetivos com a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), sendo ainda diretor da Cia. Prada Ind. e Com.
Reassumindo a reitoria da USP, em 1966, tendo o jurista e professor Alfredo Buzaid como o mais íntimo de seus colaboradores, Gama e Silva impôs, a partir de abril de 1969, a mais draconiana lógica do expurgo na universidade. Formando comissão secreta inquisitorial, Gaminha lavrara documento propondo a punição de professores e concluía “serem realmente impressionantes as infiltrações de ideias marxistas nos vários setores universitários, cumprindo que sejam afastados daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos’”, conforme relata Elio Gaspari em A ditadura Envergonhada. Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. e Fernando Henrique Cardoso foram algumas de suas vítimas na universidade.
Com a vitória da “linha dura” pela imposição de Costa e Silva na presidência da República, em 1967, o “tio Velho” de pronto recolheu à Pasta da Justiça seu amigo Gaminha, este revestindo de “autoridade jurídica” as decisões políticas de um Executivo absolutizado. No exercício de sua função, produziu decretos e atos institucionais “revolucionários” em abundância, a cada crise a ser debelada autocraticamente, esvaziando o papel do Congresso e tolhendo as atribuições do Judiciário.
Sendo “o maior ferrabrás civil que já teve na história do Brasil”, “aquele cara que ‘bota para fora os comunistas!’” e “que você dizia mata e ele dizia esfola”, segundo depoimento do jornalista Carlos Chagas, Gama e Silva levaria consigo para o Ministério da Justiça, como assessores, elementos pertencentes ao Comando de Caça aos Comunistas — o CCC.
Na reportagem “Um poder na sombra”, da revista Veja, de 21 de fevereiro de 1979, o jornalista Antonio Carlos Fon registrou o vírus da radicalização no II Exército pela ação de integrantes do Comando. Promanando mesmo “o grande aliado da organização” em Brasília, no final de 1968, sinal verde para a intervenção das Forças Armadas no combate à subversão, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, o jurista Hely Lopes Meireles, afirmara ao jornalista que a ordem de criação da Operação Bandeirantes (OBAN) “me foi passada pelo ministro Gama e Silva e pelo general Carlos de Meira Mattos”.
Tido como “maluco” por Golbery do Couto e Silva e por “velha vivandeira” que “circulava pelos bivaques dos granadeiros” segundo Elio Gaspari, o general Costa e Silva “tinha como corneta o ministro da Justiça”. A corneta, entretanto, começaria a soar por mais expurgos já mesmo na solenidade de posse do segundo presidente do ciclo militar. Durante a cerimônia, teve notícias das críticas ao regime veiculadas em artigo do jornalista Hélio Fernandes, na Tribuna da Imprensa. Dessa maneira, Gaminha logo sugeriria a aplicação do AI-2 (na iminência de seu término), negada pelo presidente como má ideia para o início de seu governo. A pretexto de protegê-lo, posteriormente, o jornalista seria confinado na ilha de Fernando de Noronha. Costa e Silva também negaria a seu Ministro da Justiça “linha dura” sua renitente proposta de fechar o Correio da Manhã.
Em 1968, Gama e Silva foi também responsável pelo fechamento da Frente Ampla, articulação oposicionista de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, sustentando ser um movimento “clandestino”, não registrado na Justiça Eleitoral. Na “Comissão de Alto Nível” convocada para elaborar um “Estudo para a Reforma da Constituição de 1967”, polemizando com o vice-presidente Pedro Aleixo, Gama e Silva se escusava aos demais: “Não me julguem tão radical assim”.
Na escalada do radicalismo de direita do segundo governo militar, porém, Gaminha ultrapassaria o próprio presidente-general. Com a movimentação estudantil e o discurso contestatório de Márcio Moreira Alves, do MDB carioca, a “linha dura” passava a exigir um novo ato institucional. Segundo Portella, o Ministro da Justiça, muito sensível à “apreensão dos Ministros Militares em terem que fazer cassações e suspender direitos políticos com certa urgência, sem dispor de um instrumento legal”, vivia alardeando a todos que tinha um ato preparado dentro de sua pasta, “um projeto de AI-5 muito pior do que o que foi afinal editado”, relata Carlos Chagas.
O máximo que Costa e Silva conseguiu, segundo depoimento de Geisel, “foi abrandar um pouco o texto que o Gama e Silva havia preparado”. O general Olympio Mourão Filho, que liderou o levante de abril de 1964, reproduziu em suas Memórias: A verdade de um revolucionário o que lhe pareceu uma frase inteira de Costa e Silva:
“Mourão, se você lesse o primeiro, você cairia duro no chão, aqui. Era uma barbaridade. Fechava-se o Congresso, modificava-se o Poder Judiciário, além de várias outras medidas de caráter nazista feroz. Recusei assiná-lo. O segundo era mais brando e como quem toma um purgante ruim, assinei-o”
Com o adoecimento de Costa e Silva, a Constituição previa que a sucessão ficaria a cargo de Pedro Aleixo, vice-presidente da República militar. Gaminha, entretanto, trabalhou ativamente no impedimento de Aleixo (a quem detestava), o único contrário à imposição do AI-5 em dezembro de 1968.
Questionado por Gama e Silva, na reunião do Conselho de Segurança Nacional que aprovaria aquele ato, se desconfiava “das mãos honradas do presidente Costa e Silva”, Aleixo respondeu negativamente. Acrescentando (conforme Carlos Chagas): “Desconfio, porém, do guarda da esquina”.
Usurpando o poder no verdadeiro “golpe dentro do golpe”, alijando os castelistas que volveriam com Geisel, os militares “linha dura” baixaram o AI-12, sagrando-se o veto a Aleixo. Conforme Chagas, “quando o Costa e Silva adoece, o Gama e Silva deita e rola. Porque ele é o jurista, também, da Junta Militar”. Logo após o sequestro do embaixador norte-americano Charles B. Elbrik pela esquerda armada, em setembro de 1969, o jurista da Junta Militar seria igualmente responsável por uma nova Lei de Segurança Nacional, pelo AI-13, com a introdução da pena de banimento, e pelo draconiano AI-14, com a instituição da pena de morte para além das situações abrangidas pela legislação militar em caso de guerra.