Hiroshigue: uma obra clássica
Ando Hiroshigue (Edo, hoje Tóquio, 1797 – Edo, hoje Tóquio, 12 de outubro de 1858), foi autor de uma obra clássica, deixou uma raríssima coleção de gravuras japonesas do século XIX – As 53 Vilas da Estrada Tokaido – que narram uma colorida viagem de Edo (a atual Tóquio) a Quioto, então capital do império.
Hiroshigue foi um gravador cujas imagens foram disputadas por artistas como Van Gogh, Claude Monet ou o poeta Baudelaire, e que em pouquíssimas ocasiões teve seus originais colocados ao alcance do público.
Para alguns cronistas, essas gravuras em madeira, à base de uma técnica denominada ukiyo-ê, chegaram à França em 1858, quando um tratado comercial abriu novamente as portas do Japão ao Ocidente. As peças teriam vindo de embrulho para proteger porcelanas, louças e objetos.
MUNDO FLUTUANTE – Na verdade, quatro anos depois de o tratado entrar em vigor, já existia em Paris, na Rue de Rivoli, uma pequena loja com o nome de La Porte Chinoise, que permitiu a artistas, poetas e escritores e descoberta dessas figuras exóticas.
Van Gogh não só as colecionava como chegou a pintar três telas que são transposições das gravuras de Hiroshigue – uma delas, Ponte na Chuva, é uma adaptação de uma das gravuras desta viagem a Quioto. O escritor Edmond de Goncourt (1822-1896) vangloriava-se de ser descobridor destes artistas e, na mesma época, o poeta Charles Baudelaire (1821-1867) escreveu sobre as japonaiseries.
Os franceses acreditaram ter descoberto uma arte sofisticada, mas as gravuras de ukiyo-ê configuram um acabado exemplo de arte popular. É verdade que ela surge com o início do período Edo, que vai de 1603 a 1867, quando os samurais tiveram paz e fortuna para transformar suas fortalezas em palácios.
Mas os temas do ukiyo-ê não eram aristocráticos. Reproduzem imagens de emoções passageiras que a gente simples, comerciantes e fornecedores da aristocracia gostavam de ver: belas mulheres, gueixas, atores famosos ou cenas de viagens. A própria palavra ukiyo-ê mudou de sentido. Até então um termo budista para “mundo triste”, nessa época teve seu sentido alterado para “mundo flutuante”. Flutuantes e efêmeros eram os prazeres que as gravuras descreviam.
Hiroshigue, filho de um chefe dos bombeiros de Edo, representa um último momento dessa arte, ao lado de dois outros mestres: Utamaro (1753-1806), cujas belas mulheres inspiraram muitas telas impressionistas, e Hokusai (1760-1849), criador de paisagens e autor da mais célebre gravura japonesa, A Grande Onda, uma cena de mar com o Monte Fuji ao fundo. Nessa série de Tokaido, feita aos 36 anos, Hiroshigue prova que não é preciso sair do realismo para traduzir emoções fortes e imagens ousadas.
Ele faz as montanhas crescerem de acordo com seu entusiasmo, prova o virtuosismo técnico numa gravura onde sugere os efeitos do vento só em poucos detalhes e, já na primeira gravura, ensina como prender a atenção alheia: a aurora aparece ao fundo, surge o cortejo na ponte de Edo mas, nas laterais, os portões da cidade ainda estão negros da noite que não terminou.
Lição oriental: saber olhar a paisagem
O Japão fechou-se ao Ocidente em 1640, expulsou os jesuítas mas continuou comerciando dom os holandeses. Depois de 1720, o xógum Yoshimune permitiu a importação de livros e o Porto de Nagasaqui tornou-se, então, um centro onde jovens artistas e intelectuais pousavam para aprender o que chegava do mundo exterior.
A gravura popular de ukiyo-ê aproveitou uma perspectiva ocidental e, à sua maneira, transformou-a numa nova forma de representação. Ainda assim, a fusão de efeitos tradicionais permitiu que surgissem imagens inéditas, como as soluções gráficas que aparecem nessa viagem a Quioto, de Hiroshigue, e também nos retratos femininos de Utamaro.
É possível que as mulheres de Degas não tivessem sido pintadas se ele não conhecesse as gueixas de Utamaro entretidas em seus afazeres íntimos. Elas também serviram de modelo aos americanos Mary Cassatt (1844–1926) e James McNeill Whistler (1834–1903). Van Gogh aproveitou as cores e a composição de Hiroshigue e também Renoir teve seus momentos de inspiração oriental.
É em Claude Monet, porém – como sugere, é tanto em Hiroshigue como em algumas telas de Monet, as pessoas, mesmo pintadas com detalhes e precisão psicológica, são apenas parte de algo maior – a natureza.
(Fonte: Veja, 3 de novembro de 1982 – Edição 739 – ARTE/ Por CASIMIRO XAVIER DE MENDONÇA – Pág: 140/142)