As grandes composições de Noel Rosa
Noel: inspiração nas morenas
Noel de Medeiros Rosa (Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1910 – Rio de Janeiro, 4 de maio de 1937), compositor de Vila Isabel, e gênio do samba carioca. Foi provavelmente o compositor mais brilhante da música brasileira. Esse gigante compôs a assombrosa marca de 250 músicas compostas por sua genialidade. Entre as canções estão Com Que Roupa?, Gago Apaixonado, Pra que Mentir, Último Desejo, Tarzan, o Filho do Alfaiate, uma das composições mais curiosas de Noel, pela combinação de lirismo na melodia e de humor na letra.
Na faixa Cem Mil Réis, aquela que rima soirée com você e tamborim com cetim, que ficou celebrizada numa gravação de Noel com Marília Batista. Para Cor de Cinza, aquela da luva de pelica esquecida num táxi durante uma tempestade “o mais belo e hermético poema impressionista do nosso cancioneiro”, disse certa vez o cronista Paulo Mendes Campos.
Compositores e intérpretes do passado, reconhecem a qualidade da música de Noel, podem ter dificuldade em situá-la na MPB, reconhecendo nela, pelos temas ou pelas melodias, apenas um vago sabor de início do século XX. Noel, que além de gênio musical, foi um revolucionário em seu tempo. Antes dele, as letras não tinham muita importância na música popular brasileira.
Noel chegou para transformar essa situação de pernas para o ar. Com sua imaginação inesgotável, rimas que são verdadeiros achados literários e sua capacidade de compor meia dúzia de obras-primas num só dia, consagrou-se como o grande cronista da vida carioca.
Noel comentava tudo. Os tipos populares também foram extensamente retratados em suas músicas, como em João Ninguém, o personagem que “come bastante no almoço pra se esquecer do jantar.” O pioneirismo de Noel é ainda mais significativa quando se considera que o samba, na época, tinha pouco prestígio – ou má fama de verdade. Ele era um compositor branco, de classe média, que se encantou com as batucadas dos sambistas negros do Estácio.
Em vez de disputar o mesmo prestígio dos grandes nomes da música da época, como Francisco Alves e Carmen Miranda, preferia se enfronhar com a nova música que surgia no morro. Por isso mesmo, em sua curtíssima carreira, teve inúmeras canções de sucesso e gozava de imenso prestígio, mas nunca se tornou um grande ídolo popular.
Noel morreu em maio de 1937, de tuberculose, aos 26 anos, meses antes da instalação do Estado Novo de Getúlio Vargas. A partir daí, assim como o país, a música brasileira nunca mais seria a mesma. O samba-exaltação, simbolizado pela Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, tomaria o lugar das crônicas urbanas e das sátiras de Noel. A História, enfim, fez sua marcha. Mas deixou em seus registros a obra genial de Noel Rosa.
Numa entrevista a um jornal mineiro, em 1935, pediu-se a Noel Rosa que definisse a alma do samba carioca. Primeiro, o compositor deitou falação sobre as origem do gênero, explicou que no começo era visto como distração de vagabundos, citou o inevitável Sinhô, profetizou que quando houvesse orquestras típicas de samba o país teria sua “música original” e esmiuçou como funcionam a cuíca, o tamborim e o afoxê. Ao final, provavelmente aborrecido pela própria retórica, Noel Rosa resumiu o falatório num único pensamento: “O certo é que o samba foi inspirado no pisar da morena carioca.” Coisa de gênio – de quem ao longo da vida conseguiu traduzir a alma popular com a acuidade de um sociólogo e a simplicidade de um filósofo de botequim.
(Fonte: Veja, 25 de dezembro de 1991 – ANO 24 – Nº 51 – Edição 1214 – MÚSICA/ Por OKKI de SOUZA – Pág: 90/91)