Um talento maldito
Céline: ainda dividindo opiniões
Louis-Ferdinand Céline (Coubervoie, 27 de maio de 1894 – 1º de julho de 1961), o “Dr. Destouches”, conhecido simplesmente por Céline, foi um escritor genial, calmo e discreto, e médico competente e bem relacionado, cujo comportamento humano foi abominável.
Autor de dois romances considerados tão importantes quanto os livros de Marcel Proust (1871-1922). Céline faz parte de uma constelação de escritores de importância desconhecidos do leitor universal. Em sua obra Morte a Crédito, é possível descobrir o inquietante universo de um autor decididamente controvertido.
Obra estranha – deprimente, grotesca, vulgar, rancorosa -, andou longos anos banida das prateleiras pela execrável reputação política do autor. Médico de subúrbio, atormentado pela mania de perseguição, Céline aderiu ao anti-semetismo em panfletos indesculpáveis como Bagatelles pour un Massacre (1937), ou L’École des Cadavres (1938). Mas, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais evidente que esse estranho livro é também um dos romances mais inovadores, sinceros e líricos do século 20.
Em 1932, Céline lançou Voyage au Bout de la Nuit e seu estilo excepcional logo ganhou elogios. Introduzindo gírias e construções populares às quais dava um tratamento altamente elaborado, em 1936 ele publicou Mort à Crédit e firmou sua posição na literatura francesa.
Isso, porém, duraria pouco. Em 1937, com a publicação do panfleto anti-semita Bagatelles pour un Massacre, atraiu sobre si mesmo uma mancha que nenhum admirador apaixonado – e sempre foram muitos – conseguiria apagar.
O que faz um francês explodir escrevendo panfletos anti-semitas em plena ascensão do nazismo, sua visão pessimista da vida, facilmente notada na forma autobiográfica de Morte a Crédito, levou-o a procurar um bode expiatório para a sua suposta infelicidade: escolheu os judeus e, com o mesmo brilho e competência, escreveu panfletos que iriam marcá-lo para sempre.
Além de Bagatelles pour un Massacre, L’École des Cadavres (1938) e Les Beaux Draps (1941), todos sempre atacando furiosa e insensatamente os judeus.
Apesar de não ter colaborado ativamente com o nazismo, fugiu para a Alemanha quando os aliados desembarcaram na Europa. Levando a mulher Lucette e o manuscrito de um romance, Guignol’s Band II, foi recebido com todas as honras na elegante estação de veraneio de Baden-Baden.
A continuação da guerra e a iminente derrota da Alemanha fizeram com que ele fugisse para a Dinamarca, onde tinha ouro depositado. Em Copenhague, hospedou-se no apartamento de uma amiga, onde a polícia iria encontrá-lo. Condenado a dezoito meses de prisão, cumpriu a pena e, ao ser libertado, lá esperou as gestões dos amigos para seu julgamento e anistia.
PRISIONEIRO DO ÓDIO – Sua versão desses episódios mostra com grande clareza os meandros do seu estranho caráter. Ao criticar os dinamarqueses por tê-lo condenado deixa passar em branco o fato de que eles se recusaram a aceitar os pedidos de extradição feitos pelo governo francês.
Assim, as autoridades dinamarquesas provavelmente salvaram sua vida, já que era grande a fúria contra ele na França, onde seu apartamento tinha sido queimado pelos patriotas, na libertação de Paris.
Graças à interferência de amigos, só foi julgado em 1950 e, segundo os juízes franceses, considerado culpado mais por palavras do que por ações. Condenado a um ano de prisão e multa de metade de seus bens, esperou até ser anistiado, em 1951, para voltar à França.
Estabelecido em Meudon, numa propriedade adquirida graças a um adiantamento de direitos autorais – seus romances já começavam a ser novamente admirados -, continuou a clinicar e a escrever, embora sem atingir a perfeição de seus dois primeiros livros.
Prisioneiro de sua amargura e de seu ódio, morreu com a reputação de escritor já refeita e resgatada. Avaliando as suas sutilezas formais, agora, será possível passar piedosamente por cima do que alguns de seus críticos qualificam vagamente de “erros, escândalos e enigmas”.
Mas é necessário separar o autor do homem e tentar isolar o criador de dois romances que já pertencem à história da literatura do médico que escreveu panfletos insustentáveis. Mais tarde suas obras voltaram a fazer sucesso na França – até sua correspondência foi publicada em 1980 – e vários livros, como Ferdinand Furieux, do pesquisador Pierre Monnier, procuram explicar a sua personalidade.
As reedições de suas obras continuam, mas os panfletos, por proibição de sua viúva, não têm sido reeditados – Bagatelles pour un Massacre foi lançado na Itália em 1981 -, embora os exemplares antigos sejam disputados nos sebos.
Após uma vida insensata e trágica e algumas obras incoerentes, maníacas – D’un Château l’Autre, (1957), Nord (1960) – , Céline faleceu em julho de 1961, numa casa de subúrbio, imbecilizado pelo rancor contra a humanidade. Escritor maldito por excelência, foi uma nulidade como homem e como pensador. Como artista, no entanto, foi certamente maior que Jean-Paul Sartre (1905-1980).
(Fonte: Veja, 24 de novembro de 1982 – Edição 742 – LIVROS / Por PEDRO CAVALCANTI – Pág: 175/176)