Dom João VI: inteligência, equilíbrio e senso prático num personagem maior que as anedotas a seu respeito
Dom João VI (Lisboa, 13 de maio de 1767 – Lisboa, 10 de março de 1826), pai de Dom Pedro I, o primeiro rei no Brasil, um dos mais fracos soberanos da Europa, foi o único que escapou às humilhações pessoais por que fez Napoleão passar os representantes do direito divino: os Bourbons da Espanha e da Itália, o rei da Prússia, o César austríaco, o próprio czar.
Dom João VI não foi o que se pode chamar de um grande soberano, mas o que fez, que não foi pouco, fê-lo pelo exercício combinado de dois predicados que denotam superioridade, um de caráter, a bondade, o outro de inteligência, o senso prático ou de governo.
Foi brando e sagaz, insinuante e precavido, afável e pertinaz, traços mais autênticos que as anedotas picarescas que lhe davam a caricatura de desmazelo bonacheirão e de esperteza saloia.
REVOLUÇÃO LIBERAL – Chega o ano de 1820, na Ibéria a situação torna-se grave, propagada a revolução liberal de Cádiz. Beresford vem ao Rio de Janeiro alertar lealmente dom João dos queixumes portugueses. Na sua volta, a junta liberal nem o deixa desembarcar. Como o Brasil sempre reflete a política da Europa, ocorre no Rio de Janeiro a curiosa cena em que um movimento em prol de uma constituição vaga obriga dom João a descer de São Cristóvão e a contragosto jurar antecipadamente qualquer constituição que viesse de Lisboa, e que ali mesmo se aclama, na ignorância do que ela pudesse vir a ser. Declamaram-se, além disso, uns versos, que exaltavam a divinal Cosntituição desconhecida, tudo com a entusiasmada participação do príncipe Pedro.
Depois dessa passagem, os dois lados da política queriam que dom João deixasse o Brasil. Um, para ter o rei de volta lá, o outro, para ter dom Pedro aqui. Daí as coisas aceleram-se, o velho reino volta-se ao objetivo de recolonizar o Brasil e surge um novo quadro geral que vai mais tarde resolver-se às margens do Ipiranga.
Que fantástico momento: o dos sucessos na borda atlântica da Europa apenas dezoito anos depois da Revolução Francesa, a nada mais que três anos de Napoleão imperador. Portugal apanhado no meio do grande conflito ideológico da época entre os ingleses, distantes aliados tradicionais, e os franceses, poderosos e exigentes conquistadores continentais.
A pressão desse esmeril político chega a tal ponto no final do ano de 1807 que numa certa madrugada se fazem subitamente ao mar, em emergência grave, a rainha viúva e insana interdita, o filho regente com a mulher e os meninos, os grandes da corte quase todos, fidalgos e dependentes, fâmulos da ucharia real, milhares de funcionários, servidores e famílias, embarcados às pressas e trazidos sob a proteção da Royal Navy dos velhos aliados.
Umas 15 000 pessoas ao todo. Imagina-se o que terá sido esse êxodo, em que estado se fez a demorada travessia do oceano, com que disposição chegaram em navios dispersos, primeiro à Bahia depois ao Rio de Janeiro, e que grau de adaptação – entre os extremos de dom João jubiloso e dona Carlota Joaquina desesperada – apresentaram esses emigrados em tão dramáticas circunstâncias.
Dom João VI vai deixar Portugal, durante treze anos, primeiro sob o que foi na prática uma regência inglesa do general Beresford. O episódio, que nos valeu, aos brasileiros, uma pacífica promoção de fato, na direção de futura independência ou separação, da qual não mais foi possível recuar quando a longa estada de dom João findou, em 1821.
Este Brasil colônia, da qual até mesmo o nome se impusera pela pela natureza às forçadas denominações geográficas oficiais de Santa Cruz e Vera Cruz. Explicação, do nome nacional de brasileiro. O homem daqui era o brasileiro que mexia com brasil e que herdaria sua denominação nacional do ofício de quem chegava à metrópole com carregamentos de um pau que dava o verzino para tinturarias e para ilustrações.
TEMPO DO ONÇA – Quando dom João chegou à sua nova sede, aqui já não era mais o “tempo do Onça”, apelido do governador e vice-rei que deixara saudade nos habitantes da colônia como governante realizador, o conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrade. Tudo até então, em matéria de urbanização, de lei e ordem, de aquedutos, era do tempo do Onça. Inclusive o casarão dos governadores na praça chamada Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro, onde o regente e a família moraram uns tempos antes de se mudar para os melhores ares de São Cristóvão. É no paço da cidade que a história prossegue, e como se organiza a administração, de como se formam os governos, os personagens palacianos, estadistas que auxiliam o regente, depois rei: dom Rodrigo de Souza Coutinho, da estirpe de Pombal, que abominava chorar em vez de obrar, Antonio Araújo de Azevedo, o cuidadoso liberal numa corte absolitista, Thomaz Antonio de Vila Nova Portugal, que foi ministro de todas as pastas.
Cuidaram esses homens de prover a estrutura do imenso país como um prolongamento da pátria. Daí que o Brasil é dos poucos países coloniais que estudam com naturalidade sua fase de colônia como parte da própria História.
No decorrer da história, acompanhamos fios domésticos como o comportamento da rainha e o rumo das ideias dos princípes, que vai degenerar lustros depois na guerra portuguesa entre dom Pedro e o mano Miguel. A criação da maquinaria de um novo Estado, a vinda de cientistas e de militares, a introdução da vacina, o surgimento da imprensa, do Banco do Brasil, a vida cotidiana, o embelezamento do Rio de Janeiro, as relações com o interior, Minas Gerais, Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Sul, estradas, pontes, a metalurgia do ferro, a construção naval, a política o=interna entre o partido inglês e o partido francês, as habilidades no trato com o grupo que ficara em Portugal e vivia as emoções de sua própria política interna de lá.
PÉS DE CHUMBO – Depois daquela tarde de domingo em Waterloo, o mundo se transfigura, os vencedores voltam ao interrompido Congresso de Viena e recomeçam a desenhar a nova ordem, da qual faz parte marginal a criação do reino unido de Portugal, Brasil e Algarves, sugerida numa conversa de salão pelo príncipe de Talleyrand ao conde de Palmela, representante de Portugal entre os vencedores.
Reina a paz na Europa, mas dom João vai-se deixando ficar por aqui mesmo. Passa o tempo, personagens sucedem a velha-guarda. As atenções do Estado voltam-se agora para a missão do marquês de Marialva em Viena, para negociar o casamento austríaco de dom Pedro e trazer aos trópicos a noiva Leopoldina; para nossas tensas negociações com a Inglaterra, que nos pressionava contra o tráfico de escravos em geral e contra o mau trato nos navios negreiros em particular; para a revolução pernambucana de 1817, “a mais espontânea, a mais simpática de nossas revoluções”.
“O espetáculo das ruas” e “As solenidades da corte”, sumarizam a vida do Rio de Janeiro ao tempo de dom João, das grandes festas aos conflitos de rua entre soldados, do mesmo exército mas portugueses e brasileiros, pés de chumbo e pés de cabra. Há cenas como a do ministro russo credenciado junto à corte do Rio de Janeiro visitando dom João para reclamar das atitudes do conde da Barca.
Os milhões de descendentes brasileiros de outros imigrantes que se conformem: este país é de fato muito português. Somos país de imigração e de mistura, mas a matriz é portuguesa e a herança é lusitana no Brasil.
Em 10 de março de 1826, morre em Lisboa o rei Dom João VI, pai de Dom Pedro I.
(Fonte: Zero Hora – Ano 45 – Nº 15.896 – Almanaque Gaúcho – Hoje na História/Por Olyr Zavaschi – 10/03/09 – Pág; 46)
(Fonte: Veja, 24 de julho de 1996 – ANO 29 – N° 30 – Edição 1454 – LIVROS/ Por HEITOR AQUINO FERREIRA – Pág: 130/131)
Em 16 de dezembro de 1815, Dom João VI eleva o Brasil a Reino Unido, integrando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
(Fonte: Zero Hora – ANO 51 – Nº 17.963 – HOJE NA HISTÓRIA – 16 de dezembro de 2014 – Pág: 44)