ADEMAR
O estilo morreu antes do homem
Ademar de Barros (1901-1969), político populista, exerceu grande influência no estado de São Paulo em meados do século XX. É impróprio dizer que, com Ademar de Barros, morreu isso ou aquilo da política brasileira. Na verdade, tudo o que ele significou, como homem político, morreu antes dele. Ademar apenas deteve por um instante – e reavivou – a imagem de um estilo político que caminha inexoravelmente para o esquecimento. A lembrança é a de uma política vazia de qualquer significação filosófica, ideológica, doutrinária, programática – e toda ocupada por uma pessoa, uma simples, controversa e mortal pessoa, também ela um ser pragmático, desprovido de qualquer compromisso que não fosse a luta incessante pela conquista ou preservação do poder, em nome de um paternalismo ornado pelos “slogans” mais singelos e na defesa da ordem então estabelecida. Na singeleza, capaz de penetrar as mentes resistentes de uma massa semi-analfabeta, o segredo do êxito, concretizado ao ser eleito Governador de São Paulo em 1946 e em 1962 e Prefeito da capital em 1957.
Ademar Pereira de Barros nasceu em Piracicaba SP, em 22 de abril de 1901. Formado em medicina pela Universidade do Brasil em 1923, fez pós-graduação durante quatro anos na Universidade Popular de Berlim. De volta ao Brasil, trabalhou no Instituto Osvaldo Cruz, até 1932, quando se engajou nas fileiras da revolução constitucionalista. Com a derrota do movimento, asilou-se no Paraguai e na Argentina. Em 1934, elegeu-se deputado pelo Partido Republicano Paulista. Mais tarde fundou o Partido Republicano Progressista, que se transformaria no Partido Social Progressista (PSP). Interventor em São Paulo durante o Estado Novo, em 1947 elegeu-se governador, com o apoio dos comunistas.
Candidatou-se em 1955 à presidência da república pelo PSP, mas foi derrotado. Elegeu-se em 1957 prefeito da capital paulista; no ano seguinte candidatou-se ao governo do estado e em 1960 novamente à presidência, sendo derrotado nas duas ocasiões. Foi eleito governador de São Paulo pela segunda vez em 1962, depois de haver apoiado no ano anterior o movimento em favor da investidura de João Goulart na presidência, após a renúncia de Jânio Quadros. Participou, entretanto, da conspiração que resultou no movimento militar de 31 de março de 1964, o que não impediu que fosse afastado do cargo pelo presidente Castelo Branco e tivesse os direitos políticos cassados por dez anos, sob a acusação de corrupção.
“ROUBA MAS FAZ” – Se a publicidade de Ademar de Barros jamais chegou a usar a expressão, imoral e eufônica, como atrativo para a campanha eleitoral, o fato é que ela traduzia uma verdade política nacional. Dessa verdade, o ex-governador de São Paulo chegou a ser uma espécie de caricatura, tão aguda foi a sua identificação com o que ela contém. Essa identificação vinha desde a sua origem – escolhido por Getúlio Vargas no início do Estado Novo para, como interventor no Estado, dissolver a organização política tradicional da sociedade paulista, que ainda em 1937 sobrevivia à Revolução de 1930. E o acompanhou até o seu fim, na cassação melancólica em 1966. “Rouba”. Talvez não roubasse. Por certo deixou roubar. O grau exagerado de tolerância é inseparável dessa espécie de demagogia e de personalismo. A “caixinha”: se não como forma de enriquecimento pessoal, pelo menos como processo de angariar recursos para campanhas políticas iniciadas, conduzidas e concluídas em meio à corrupção, que fatalmente se espraiaria ao longo do Governo em seguida instalado.
“Faz”. Não fez, senão aquilo que o potencial econômico de São Paulo tornou possível e, mais que isso, necessário fazer. O fazer desmoralizou-se logo, com a eficiência dos vários governos que se sucederam. Todos fizeram alguns com bastante probidade. As razões do êxito de Ademar de Barros foram a comunicabilidade, o linguajar grotesco no milionário que falava alemão perfeito (era formado em medicina em Heidelberg); o talento raro para manusear os interesses pessoais, formando e consolidando grupos desses interesses comuns sob a sua liderança; e o esforço de criar a imagem do realizador, do dinâmico, do “gerente”. Nesse ponto, o traço mais nítido da caricatura: um homem formar um partido nacional que tinha por bandeira apenas o nome desse homem, com o seu imenso vazio de ideias – e esse partido, o extinto Partido Social Progressista, tornar-se a quarta bancada partidária num Congresso que abrigava representantes de treze legendas. A bancada ademarista, por onde anda? Na Arena – o partido do Governo que cassou seu líder – para onde o oportunismo conduziu a quase totalidade dos seus membros, e já no ostracismo, onde mergulha para sempre, como seu tempo político.
TEMPOS MODERNOS Fazer, hoje é quase nada. O verbo se associa à ideia de improvisação e de leviandade. Agora é o tempo de planejar, o tempo dos computadores e das estatísticas. É um tempo que não dá lugar a essa espécie de carisma nascido apenas da imagem do pai dos pobres, do misticismo de mafuá, do “fé em Deus e pé na tábua”. É o tempo das equipes. Com inteligência e esperteza, Ademar passou trinta anos às voltas com o poder, ora humilhado, quase sempre engrandecido. Com esses mesmos atributos, soube ver antes de outros, que o fim chegara. Aceitou-o sem espernear, rompeu os últimos laços que o prendiam ao seu público e passou a esperar a sua hora. Coragem, pitoresco, franqueza rude, mangas de camisa, devoção aos santos, repulsa à violência alheia, capacidade de trabalhar, defesa do “status quo” sócio econômico do seu tempo – isso fez o populismo, o processo político de anestesia e engodo capaz de extorquir da maioria eleitoral o apoio para uma forma de governar que mascarava seu significado real: a defesa firme dos interesses estabelecidos.
Que roubem, é impossível evitar agora e sempre. Que façam, é sempre desejável. Mas é difícil de se acreditar que roubar volte a ser, no homem público, um procedimento irrelevante e que fazer seja o resultado apenas da vontade eventual de cumprir promessas eleitorais. Ademar de Barros morreu em 17 de março de 1969 em Paris, onde passara a residir.
(Fonte: Veja, 19 de março, 1969 Edição n.° 28 POLÍTICA – Pág; 17)