Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora francesa, feminista qualificada intelectual e formadora de várias gerações. Ao lançar, em 1949, o livro O Segundo Sexo, analisando a condição feminina, Simone de Beauvoir adquiriu a condição de precursora do movimento feminista, tocando em temas até então consideradas tabus. Questões ousadas e explosivas, como o uso do próprio corpo, o casamento, o aborto, a prostituição, o parto sem dor ou o divórcio, só amplamente debatidas na década de 60, foram focalizadas com lucidez e audácia pela escritora. “Não se nasce mulher, torna-se”, escreveu, para demonstrar que condições sociais, econômicas e morais impediam a liberdade e o desenvolvimento intelectual e afetivo das mulheres.
A vida de Beauvoir foi uma prova incontestável de que suas teorias podiam ser levadas à prática e ao cotidiano. Nascida em 9 de janeiro de 1908 numa família parisiense de alta classe média, de tradição católica, Beauvoir rompeu com a rotina de vida destinada às moças de seu tempo. Nem se casou nem teve filhos, vivendo com o filósofo francês Jean-Paul Sartre em apartamentos separados para não perderem a liberdade. Escreveu mais de vinte livros entre romances como Os Mandarins, prêmio Goncourt de 1954, a trilogia de memórias com o título Sob o Signo da História, em que narra sua visita ao Brasil em 1960, ciceroneada pelo escritor Jorge Amado, e ensaios inovadores como A Velhice, de 1964, em que analisava a solidão reservada aos idosos. Com coragem, escreveu ainda o pungente relato da morte de sua mãe, Uma Morte Muito Suave, de 1964, e no seu último livro, Cerimônia de Adeus, de 1981, fiel a si mesma e à verdade, escandalizou os leitores ao descrever com minúcias a decadência física dos últimos anos de Sartre.
“ESTAMOS ÓRFÃS” – Sem dúvida, o fato mais marcante de sua vida foi a relação, de mais de cinquenta anos, com o filósofo existencialista. União que nem sequer foi abalada quando, numa viagem em 1947 aos Estados Unidos, Beauvoir se apaixonou pelo escritor americano Nelson Algren e manteve um romance com ele que se estendeu até os anos 60. Algren nunca compreendeu por que Beauvoir não se separava de Sartre. O filósofo, por sua vez, teve inúmeros casos amorosos, mas manteve-se fiel ao compromisso selado com Beauvoir nos bancos escolares da Sorbonne quando se conheceram – nunca se separariam, mas um não atrapalharia a liberdade do outro. Foi com Sartre, após a II Guerra Mundial, que ela fundou o movimento filosófico que agitou a intelectualidade, o existencialismo. Depois aproximaram-se dos marxistas e, mais tarde, tornaram-se críticos da União Soviética e flertaram com o maoísmo.
Sempre usando seu turbante na cabeça, Beauvoir podia ser vista em passeatas contra a invasão dos soviéticos na Hungria, em 1956, ou com os estudantes em maio de 1968. O seu único medo confesso era o de ter de passar pela infelicidade inexorável de morrer antes ou depois de Sartre. “É terrível saber que um não pode consolar o outro”, escreveu. Seis anos depois da morte de Sartre, no mesmo mês e com um dia a menos, Beauvoir morreu. Dia 14 de abril de 1986, aos 78 anos, de edema pulmonar, no hospital Cochin, em Paris. As feministas perderam aquela que foi a sua mais qualificada expoente. As associações feministas da França exprimiram num comunicado de duas palavras o que sentiam: Estamos órfãs.
(Fonte: Veja, 23 de abril, 1986 – Edição 920 – DATAS – Pág; 97)