O artista do céu
Alberto Guignard (Nova Friburgo, 25 de fevereiro de 1896 – Belo Horizonte, 25 de junho de 1962), pintor fluminense, um mestre da beleza e da dor. O artista teve sua formação estética na Europa dos anos 10 e 20. Houve quem o chamasse de santo, como fez Di Cavalcanti. A grande maioria de seus amigos e alunos, contudo, sempre preferiu vê-lo à semelhança de um anjo ou de uma criança. Ainda que vivesse alheio aos mitos criados a sua volta, Guignard tinha mesmo a cabeça nas nuvens. A partir dos anos 40, enquanto Portinari tentava transplantar o cubismo de Picasso para a aridez do sertão, Guignard subvertia gentilmente a lei da gravidade em suas paisagens de Minas Gerais. Nelas, as estradinhas desembocam no céu e as igrejas flutuam em meio a montanhas, que, por sua vez, parecem prestes a se evaporar. Tais visões são a marca da modernidade em Guignard e fazem dele um nome essencial da pintura brasileira. Suas paisagens, além de retratos e cenas populares repletas de balões coloridos os pontos altos de sua obra -, integraram em outubro de 1992, a mostra que o Museu Lasar Segall, em São Paulo homenageou sua memória.
ENGASGO Se Guignard foi mesmo um santo distraído, conforme atesta a mitologia que ronda sua figura, não é mesmo verdade que também tenha sido um beberrão que frequentou assiduamente a sarjeta nos fins de noite. O anjo que torrava dinheiro com balas e brinquedos para as crianças, e doava seus quadros para as moças por quem se apaixonava platonicamente, era o mesmo grandalhão desengonçado de lábio leporino e voz fanhosa que perdeu o pai na infância, foi roubado pelo padrasto na herança da mãe e abandonado pela mulher em plena lua-de-mel. Todas as cirurgias a que se submeteu não foram capazes de corrigir o defeito congênito que ligava seu nariz à boca. Guignard sofria constantemente com uma rinite e, ao comer, sempre se engasgava, provocando a repugnância de amigos e musas. Em seus auto-retratos, nitidamente expressionistas, o artista é o primeiro a denunciar a dor que também transparece em suas cenas religiosas, principalmente nas cabeças de Cristo crucificado.
A face trágica da existência de Guignard, seu desapego pelo dinheiro e sei alcoolismo acabaram contribuindo ainda mais para sua beatificação. A atmosfera bucólica de suas paisagens, por sua vez, tem sido erroneamente associada à pintura primitiva, como se Guignard fosse um artista ingênuo. O pintor certamente não se incomodaria em ser chamado de primitivo. Ele não ligava a mínima para a autenticidade de sua obra, tendo várias vezes chegado ao extremo de assinar trabalhos de alunos para ajudar a vendê-los. O desprendimento do mestre animou uma indústria de falsários, que até hoje abastecem o mercado com paisagens de Guignard.
Sempre na linha bonachona, o artista também pintava apenas para se divertir. Ele gastou boa parte de seu tempo decorando móveis, biombos e até violões com arabescos coloridos. O museu que leva seu nome em Ouro Preto, onde morou no último ano de sua vida, abriga mais de uma centena de bilhetinhos decorados com desenhos e dobraduras em homenagem às moças que cortejou. Para além de todo o folclore, entretanto, Guignard era um sujeito culto e refinado. Não se tem notícia de outro artista que, como ele, tenha se inspirado ao mesmo tempo na pureza renascentista de Boticelli e nas cores feéricas de Matisse.
Depois se libertar do domínio do padrasto, que queria transformá-lo em jóquei, ao completar 21 anos, em 1917, Guignard cursou a Academia de Belas Artes de Munique, onde aprendeu a desenhar. Logo que retornou ao Brasil, em 1929, tornou-se professor de desenho e aplicou sua técnica com alunos como o gaúcho Iberê Camargo. Em 1944, a convite de Juscelino Kubitschek, transferiu-se para Minas Gerais, onde fundou uma escola que leva o seu nome. Em suas lições, seus alunos, entre os quais está também o escultor Amilcar de Castro, recordam-se que o mestre sempre exclamava tim!, imitando o ruído das taças de cristal, quando julgava que uma obra houvesse atingido a perfeição.
(Fonte: Veja, 7 de outubro de 1992 Edição nº 1256 ARTE/ Por Ângela Pimenta – Pág; 112 a 113)