Um dos pioneiros e papas do pensamento católico progressista no país
Uma das mais ricas trajetórias da história da cultura brasileira
Alceu Amoroso Lima (Cosme Velho, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1893 – Petrópolis, Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1983), o Tristão de Athayde, talvez o maior crítico literário surgido no Brasil no século XX, certamente o maior intelectual católico e, também com certeza, uma das poucas pessoas no país a merecer o título de pensador. As gerações mais novas conheceram, sobretudo, o comentador dos assuntos da filosofia e da religião, ou o adversário implacável do regime de 1964, nos artigos semanais que publicava no Jornal do Brasil e na Folha de S. Paulo. Há muito mais, porém, na bagagem de Alceu.
Como crítico literário, para começar, Alceu muito cedo desempenhou o papel de “grande codificador do modernismo”, aquele que se propôs a oferecer “uma disciplina intelectual à atividade caótica dos modernistas”, segundo a definição de outro crítico, de uma outra geração, o ex-ministro da Educação Eduardo Portella. Mais tarde, a partir do artigo Romancista ao Norte, de 1928, em que revelava ao país o hoje clássico A Bagaceira, de José Américo de Almeida, Alceu desempenharia as funções de lançador ou avalista de toda aquela segunda geração modernista de que fazem parte José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Ao crítico literário, porém, é preciso somar o observador atento da política nacional, sempre a tomar partido e a oferecer soluções, em mais de sessenta anos de vida republicana. E a este é preciso acrescentar o pensador católico – o homem que, a rigor, sozinho, se incumbiu de conferir à Igreja, no Brasil, um substrato intelectual, e de resgatá-la da penumbra das sacristias para a esfera do pensamento e da ação cultural. “A Igreja não é mais o refúgio das beatas e dos corolas, objeto da indiferença dos pensadores”, saudava, a propósito de Alceu, no início da década de 30, o escritor Gilberto Amado.
Certa vez, em 1914, aos 20 anos, hospedado no Hotel Daniel, em Veneza, triste e deprimido, ele pensou em suicidar-se. “Por que não me atiro logo de uma dessas pontes?”, indagou-se. Não se atirou – mas o pensamento da morte voltou a visitá-lo de novo três anos mais tarde, durante a I Guerra Mundial. Desta vez ele passou suas fantasias para o papel. Escreveu numa folha solta, que guardaria por toda a vida, que estava decidido a alistar-se na guerra. E mais: que tinha certeza de que morreria em combate. Em seguida, já providenciava uma despedida: “A vida não me foi adversa”, anotou, “mas dela abdico apenas com uma ligeira saudade”.
NASCIMENTOS – É curioso, ao se lançar os olhos para a totalidade da trajetória de Alceu, nascido em Cosme Velho, no Rio de Janeiro, a 11 de dezembro de 1893, e formado em Direito, que o pensamento de morte o tenha visitado tão frequentemente na juventude. Na verdade, este foi um homem de nascimentos, belos e comoventes momentos de renovação que, estes sim, ficaram pespegados à sua figura sábia e translúcida. Um desses nascimentos – o do amor, por ele mesmo relembrado repetidas vezes – ocorreu quando conheceu aquela que viria a ser sua mulher, Maria Teresa de Faria, irmã do romancista Octávio de Faria, com quem viveria por 64 anos, até sua morte, em 1981, e teria sete filhos. Outro foi o nascimento do crítico literário, ocorrido em 1919, quando Alceu foi convidado a colaborar no recém-nascido O Jornal, do Rio de Janeiro. Surgiu aí o Tristão de Athayde, com que sempre assinaria seus escritos. Outro nascimento, enfim, foi sua conversão ao catolicismo em 1928, aos 34 anos. Alceu começou nos caminhos da fé pelas mãos de um influente intelectual dos anos 20, Jackson de Figueiredo, com quem se correspondeu por seis anos seguidos. Houve outros fatores, um dos mais intrigantes dos quais é apontado pelo escritor católico, e discípulo de Alceu, Antônio Carlos Villaça (1928-2005). Ao tempo de sua conversão, escreveu Villaça, em artigo no Jornal do Brasil, Alceu teve uma “preocupação muito viva e muito intensa com a loucura”, e chegou a reunir uma pequena biblioteca a respeito. A conversão, conclui Villaça, veio através dessa meditação sobre a loucura, isto é, sobre os limites do homem, ou o caos ou o cosmo.”
A conversão ao catolicismo significou, para Alceu, um Adeus à Disponibilidade, conforme ele resumiria no título de uma famosa carta a Sérgio Buarque de Holanda. Não foi só isso, porém. Significou, também, a configuração de Alceu tal como ele agora ingressa na história da cultura brasileira, tão notável pela erudição, a precisão e a fineza do raciocínio quanto pela grandeza humana. Alceu, na história do pensamento brasileiro, foi uma espécie de ponte. E ponte em dois sentidos, no comprimento e na largura – ponte tanto no sentido de, com raízes fundas no passado, atualizar-se de modo a por vezes superar as novas gerações, como no de exercer atração sobre segmentos e pessoas diversas, às vezes até opostas.
MACHADO E TITO – Apesar de autor de mais de oitenta livros, sobre assuntos que cobriram virtualmente toda a gama das artes e das ciências humanas, e de ter mantido uma colaboração na imprensa ininterrupta ao longo de 64 anos, Alceu não é um escritor que se associe a um título preciso, não é o autor de um livro marcante como, por exemplo, Gilberto Freyre é autor de Casa Grande e Senzala. Sua especialidade era mais a de um distribuidor de doses homeopáticas, mais de um fornecedor de vitaminas diárias do que de apenas um único, embora magnífico e inesquecível, prato. Nesse exercício, sua longa existência permitiu-lhe ir longe, no papel de ponte entre as gerações. Quando criança, no bairro do Cosme Velho, ele tinha por vizinho ninguém menos que Machado de Assis, “aquele homem tímido, que passeava à tarde com dona Carolina, sua esposa”, conforme registrou certa vez. Sai Machado de Assis e, mais de meio século depois, entra Frei Tito de Alencar Lima – o dominicano torturado pelo delegado Sérgio Fleury no DOPS de São Paulo na época dura da repressão ao terrorismo que, anos depois, no exílio na França, viria a suicidar-se.
Ir de Machado de Assis a Frei Tito apenas porque se teve uma existência longeva é apenas uma proeza física, mas a esta se deve juntar outra, a proeza moral de se emocionar com um como com o outro – e aqui se começa a desenhar o papel de ponte no outro sentido, o da transigência e da solidariedade. A figura ecumênica representada por Alceu pode ser medida pela própria variedade das presenças a seus funerais, realizados no Mosteiro de São Bento. Ali estavam presentes o ex-secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, Luiz Carlos Prestes, ao ex-governador de Minas e ex-presidente da Arena Francelino Pereira, sem contar governadores como Franco Montoro, de São Paulo, e Leonel Brizola do Rio de Janeiro. Seria, ainda uma vez, uma proeza fácil, no entanto, se o papel de ponto de referência para pessoas de formação e posição diversas tivesse sido desempenhado como exercício de mera conciliação, ao abrigo de posições vagas e indefinidas, onde coubesse qualquer um. Foi muito ao contrário o que ocorreu – Alceu sempre teve opiniões claras e fortes.
Aquele Adeus à Disponibilidade de sua conversão não significou apenas um adeus à disponibilidade de agnóstico. Ao mesmo tempo, ele se despediu de sua disponibilidade de diletante político, e a partir daí seguiria sempre caminhos engajados, num roteiro tortuoso que o levou do integralismo nos anos 30 – desaguadouro natural para quem se deixava guiar pela linha ortodoxa e conservadora de Jackson de Figueiredo – até a condição de um dos pioneiros e papas do pensamento católico progressista no país. Na verdade, a característica de intelectual respeitado e acatado, mesmo pelos contrários, vem do fato de, além de falar sempre com consistência e inquestionável conhecimento de causa, Alceu não obedecer a outra coisa se não a seus princípios – ou, mais que isso, a uma força de espírito talvez só possível no religiosos. Nele, como em pouca gente mais, se pode falar em “autoridade moral”. Só no domingo, dia 14 de agosto de 1983, 66 anos e quatro meses depois – e decorridas mais três vidas iguais àquela que vivera até a despedida escrita – Alceu Amoroso Lima, morreria de verdade. Sua morte, de câncer, aos 89 anos, em Petrópolis, encerra uma das aventuras intelectuais mais prolíferas, extensas e diversas da história da cultura brasileira. Ficará de Alceu a imagem luminosa do intelectual integral e integral ser humano – que se interessava fundamente pela loucura, à época de sua conversão – talvez possa servir de chave para se entender sua trajetória. Homens como Alceu nascem – “são enviados por Deus” – exatamente para desbastar a loucura do caminho.
(Fonte: Veja, 24 de agosto, 1983 – Edição 781 – Datas – Pág; 92/93 e 94)