Ana Vieira, autora de uma obra que cruza diversas disciplinas

0
Powered by Rock Convert
Ana Vieira fotografada em 2011 (PEDRO CUNHA)

Ana Vieira fotografada em 2011 (PEDRO CUNHA)

Ana Vieira, autora de uma obra que cruza diversas disciplinas

Morreu na madrugada desta segunda-feira em Lisboa, vítima de cancro, a artista plástica Ana Vieira fez saber num comunicado a galeria que a representava, a Graça Brandão. Nascida em 1940, destacou-se no cruzamento das diversas disciplinas artísticas, criando um corpo de trabalho original e inspirador no conjunto da arte portuguesa contemporânea.

De origem açoriana da parte do pai e conimbricence do lado materno, Ana Vieira viveu toda a infância nos Açores, facto que marcaria indelevelmente o seu trabalho. Muros de abrigo, o nome escolhido para a grande retrospectiva que o Museu Gulbenkian lhe consagrou em 2011, refere uma característica específica da arquitectura rural açoreana: os muros construídos nas propriedades para protejer as culturas do ar salgado. Na altura, a artista contava que se passava de muro para muro por portas que se abriam nas paredes, sendo que a última porta dava para o mar. Já nessa memória se destacava aquela que seria uma das grandes constantes do seu trabalho plástico: a dialética entre a ocultação e a desocultação de um lugar, preferencialmente de um lugar privado, doméstico.

No começo dos anos 60 Ana Vieira muda-se para Lisboa para frequentar a Escola de Belas-Artes. Formar-se-ia em 65, tendo entretanto conhecido aquele que seria o seu marido, o pintor Eduardo Nery. Era mãe de Paula Nery e do arquitecto Miguel Nery.

Pouco tempo depois começa também a expor, primeiro colectivamente e, a partir de 68, individualmente em galerias e museus. Na Quadrante, na Quadrum, em diferentes instituições açoreanas, na Gulbenkian e no CAPC de Coimbra, antes de uma internacionalização que tardou a vir, apresentou obras e projectos que tinham em comum a recusa da facilidade comercial. Logo nos anos 70, criou, por exemplo, os Ambientes, entre os quais uma Sala de Jantar pertencente hoje ao Museu Gulbenkian.

Tratava-se de dispositivos formados por cortinas e véus onde se vislumbravam silhuetas de objectos característicos do espaço doméstico e feminino – mesas, cadeiras, armários -, sem que  contudo o visitante pudesse penetrar nesse espaço.  Muitas das peças de Ana Vieira, situavam-se nesta fronteira entre o que é acessível e visível e o que não é. Para além dosAmbientes, a grande antológica da Gulbenkian mostrou também corredores, salas escurecidas, e lugares com palavras escritas apenas legíveis graças a uma um tipo de iluminação especial. Estas últimas, de uma radicalidade pouco comum, obrigavam o visitante a um exercício de voyeurismo que replicava a própria experiência do objecto de arte.

Ana Vieira integra um grupo prestigiado e restrito de mulheres artistas que, em Portugal, souberam e sabem realizar uma obra artística sem cedências de qualidade. Lourdes Castro, Helena Almeida ou, numa outra geração, Ana Jotta têm tido uma actividade eticamente exemplar, tal como sucedeu sempre com Ana Vieira.

No caso desta artista, as memórias da infância em São Miguel aparecem pontualmente em alguns trabalhos, embora estas digressões conceptuais pelo passado não tenham que ser sistemáticas. No princípio dos anos 90, por exemplo, a instalação Pronomes, mostrava o capote-e-capelo do traje feminino tradicional de São Miguel em diversos exemplares. Penduradas do tecto, acopladas com uma instalação sonora que  enunciava pronomes pessoais, as peças revelavam uma qualidade dramática que era também, sociologicamente, a única possibilidade para a existência feminina fora do espaço doméstico.

É que, quase sistematicamente, a reflexão sobre o lugar da mulher, a sua imagem transmitida pela arte e a solidão que a sociedade patriarcal a condena são presenças constantes no seu trabalho. Enunciaremos, neste campo, uma instalação realizada num andar devoluto no centro de Lisboa, Casa Desabitada, produzida pelos Artistas Unidos em 2004; ou a sua participação em Acabamentos de Luxo, uma colectiva realizada em 94 na Associação de Arquitectos Portugueses, onde recriava uma sala de estar pequeno-burguesa, autêntica moldura para uma qualquer vida de mulher destituída de esperança. Ou ainda, mais recentemente, uma sala de jantar apresentada na Galeria Graça Brandão onde os móveis se decompunham e desfaziam como seres orgânicos mortos.

 

Jorge Silva Melo, director dos Artistas Unidos, recorda que foi com o projecto de Casa Desabitada que conheceu pessoalmente a artista. No início dos anos 2000, Ana Vieira deixou na recepção da companhia, então no edifício A Capital, um dossier com uma proposta de uma exposição. Foi esse projecto que deu origem a uma colaboração entre ambos, que teve como primeira realização duas mostras sucessivas em duas casas abandonadas em Lisboa (Rua Ivens) e no Porto (Rua de Nossa Senhora de Fátima).

Mas o conhecimento, e a admiração, que o encenador dos Artistas Unidos tem pela obra de Ana Vieira vinha já muito de trás, da viragem dos anos 1960-70, quando viu as suas primeiras exposições na galeria Quadrante, em Lisboa. E estendeu-se depois pelo tempo adiante, até resultar no documentário que lhe dedicou, E o que Não É Visto (2011), possibilitado pelo apoio da Fundação Gulbenkian aquando da exposição retrospectiva que nesse ano dedicou à artista.

“Ela tem uma obra completamente singular, muito marcada pela noção de casa, de protecção, mas que com o tempo vai aparecendo cada vez mais rarefeita”, em imagens de “restos, de sombras”, recorda Silva Melo, que lamenta que a sua produção seja “pouco conhecida em Portugal”, apesar da sua “grande intensidade”. E vê nela “muitos pontos de contacto com a escrita da Fiama Hasse Pais Brandão”.

O cineasta fala também da personagem, “sempre muito reservada e reticente”, que no início da rodagem de E o que Não É Visto quase se não deixava filmar, mas no fim acabou por aceitar que a equipa fosse mesmo filmá-la na sua casa nos Açores.

A radicalidade do trabalho de Ana Vieira acarretou consigo, como sempre sucede, um sucesso comercial mais do que discutível. A artista contava, mesmo assim, que toda a vida tinha fugido do objecto artístico, e que não era nos últimos anos que iria ceder a essa facilidade. O seu trabalho mostrava-se a um ritmo muito próprio, com uma produção mais lenta do que aquela que o sistema económico em que vivemos exige aos artistas.

O ensino, decerto como consequência do que dizemos, foi também uma constante durante toda a sua vida activa. Mas nem as instituições, nem os curadores, nem os artistas mais jovens a ignoraram por isso, sendo que a sua obra foi legitimada, através dos anos, pelas principais instituições e autores portugueses: participou na Alternativa Zero, em 77, organizada por Ernesto de Sousa, que introduziu a contemporaneidade no espaço artístico português. Recebeu o Prémio AICA, o mais importante prémio de carreira em Portugal, em 1991. E, além da retrospectiva na Gulbenkian, realizou uma antológica, em 98-99, em Serralves.

O curador desta exposição no Porto foi João Fernandes, então director artístico do Museu de Serralves. “Tive o privilégio de trabalhar com a Ana na sua primeira exposição antológica, quando ela transformou a Casa de Serralves nessa casa de labirintos e mistérios que o seu trabalho construía, interrogando as convenções e os fantasmas que sempre esconderam a mulher dentro dessa casa portuguesa, com certeza”, diz o actual subdirector artístico do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid, em depoimento enviado ao PÚBLICO via email.

Consternação nos Açores

Nos Açores, a notícia da morte de Ana Vieira motivou grande consternação. Quem o afirma é o padre Duarte Melo, director do Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, que não escondeu a tristeza pelo desaparecimento da artista cuja vida sempre esteve intimamente ligada à ilha de São Miguel.

“A Ana Vieira era uma artista de coração açoriano, que soube viver no meio do mar” e cuja obra se “intensificou com esse vivência”, diz o director do museu, onde, há três ou quatro anos, refere, a artista apresentou “uma exposição fantástica”, Muros de Abrigo, extensão da antológica da Gulbenkian.

Sobre a relevância da obra, Duarte Melo não tem dúvidas de que ela “deixou marca na arte portuguesa, pois quebrou os cânones do formalismo, e será reconhecida por isso”.

Duarte Melo revela que a artista tinha em mãos dois projetos para os Açores: o primeiro seria uma residência artística, no próximo Verão, no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, em Ribeira Grande; estava simultaneamente a trabalhar num projeto sobre os ciclos econômicos das ilhas, que se chamaria A Casa dos Ciclos, e que o diretor do museu açoriano assegura seria a concretização do “grande sonho” de Ana Vieira.

Fica a memória de uma figura que Duarte Melo caracteriza com estas palavras: “Humildade, serenidade, uma timidez desconcertante e uma fragilidade imensa, mas, ao mesmo tempo, uma força muito grande”. Uma imagem que é corroborada por Jorge Silva Melo, que via em Ana Vieira “uma mulher muito bonita, sempre a querer escapar de alguma coisa…”.

A notícia da sua morte apanhou o cineasta-encenador a cumprir, em Lisboa, o último dia da rodagem de um novo documentário sobre outra artista, Sofia Areal. “Hoje [segunda-feira] à tarde, iremos filmar o último plano do filme perto da casa da Ana”, disse ao PÚBLICO, vendo nisso uma coincidência inesperada que podia também ganhar o sentido de homenagem.

Já João Fernandes lembra que Ana Vieira “cultivava o seu mistério, mas sofria com a desatenção e o desamor que o país sempre dedicou aos seus artistas”. “As colecções privadas quase sempre a ignoraram, numa demonstração triste das suas vaidosas ignorâncias, e as instituições eram tão poucas que pequenas se tornavam para a grandeza da sua obra”, acrescenta o curador, acrescentando que “não se pode contar a história da arte do nosso tempo, ou a história das mulheres em Portugal, sem contar com o seu nome.”

(Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia – CULTURA ÍPSILON/ Com Sérgio C. Andrade –  LUÍSA SOARES DE OLIVEIRA  – 29/02/2016)

Powered by Rock Convert
Share.