Angenor de Oliveira (1908-1980), o compositor Cartola. Sua vida dedicada à boêmia, e à música

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Cartola (1908-1980), Angenor de Oliveira, o compositor Cartola. “Tenho uma velhice feliz”, costumava dizer nos últimos anos de sua vida dedicada à boêmia, à música e à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, no Rio de Janeiro. Autor de três composições: “As Rosas Não Falam”, “O Mundo É um Moinho” e “O Inverno do Meu Tempo”, a primeira considerada sua mais perfeita criação. Nasceu no dia 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete no Rio de Janeiro (RJ).

VERDE E ROSA – O apelido Cartola foi dado por operários de construção, que viam em seu vulgar chapéu de coco, com o qual se protegia da tinta nos olhos, uma nobre cartola. Morador do morro da Mangueira desde os 11 anos, poderia ter sido bom gráfico como sonhava o pai, mas acabou pedreiro e apaixonado pelo carnaval. Com o amigo e parceiro até o fim, Carlos Cachaça, foi um dos fundadores do Bloco dos Arangueiros, que, ao se juntar a outros do morro, transformou-se na segunda escola de samba carioca, a Estação Primeira de Mangueira (1929). Foi de Cartola a decisão de misturar corajosamente verde com rosa na bandeira e no vestuário dos desfiles, numa associação ingênua que, considerada como de mau gosto, tornou-se a própria base de uma raiz primitiva da Mangueira, frequentemente vulgar.

Nos anos 30 vários cantores gravaram suas músicas – Cármen Miranda, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida. Em 1929, Cartola vendeu uma canção para Mário Reis, que a repassou ao maior cantor da época, Francisco Alves. Em 1932 conheceu Noel Rosa, com quem fez amizade. Em 1940, foi procurado pelo compositor erudito Heitor Villa-Lobos para efetuar uma gravação para o maestro americano Leopold Stokowski, que realizava uma pesquisa sobre músicas nativas. O compositor participou do “Cartola Convida”, uma série de shows na Praia do Flamengo, em 1970, quando apresentava sambistas amigos seus para um público jovem. Em 1974, através da gravadora independente Marcus Pereira, Cartola finalmente gravou seu primeiro disco solo, “Cartola”. Dois anos depois, a mesma gravadora lançou um segundo disco seu, contendo uma canção que viria ser um de seus grandes sucessos, “As Rosas não Falam”, que serviu de trilha para uma novela da Rede Globo.

Conhecido do grande público, Cartola passou a ser convidado para fazer muitos shows. Com o compositor João Nogueira, participou do projeto Pixinguinha, tocando e cantando por todo o país. Em 1977, voltou a desfilar pela Mangueira, depois de 28 anos. No ano seguinte, lançou um disco por uma grande gravadora, a RCA Victor. No ano seguinte, em busca de tranqüilidade, Cartola e dona Zica saíram do morro da Mangueira para morar numa casinha em Jacarepaguá, subúrbio carioca. Mas a felicidade durou pouco: logo perdia a primeira mulher, Deolinda, a Mangueira começava a perder na avenida e Cartola, após uma briga com a diretoria da escola, largava tudo para morar em Nilópolis. Aguentou pouco: de volta à Mangueira, esqueceu a velha mágoa e reencontrou uma antiga namorada de infância, Euzébia Silva do Nascimento, a Zica. “Ela segurou a barra enquanto eu tomava duas garrafas de cachaça por dia. Vendia marmitas para a gente ir vivendo”, contou ele tempos depois.

ENTERRO DO SAMBISTA – No final da década de 50 lavava carros numa garagem de Ipanema quando o jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, “descobriu-o” de novo para a vida artística. O público, porém, só começaria a saber de sua existência a partir de 1964, quando Nara Leão lançou”O Sol Nascerá”, fruto das rodas de samba que se formaram no famoso restaurante Zicartola, que funcionou na rua da Carioca entre 1964 e 1965. O restaurante rapidamente se converteria no ponto de encontro dos intelectuais que queriam ouvir o samba autêntico do morro, executado por Cartola e seus amigos. Muitos desses frequentadores, contudo, não pagavam suas contas e em breve o Zicartola fechava as portas. Mas foi a partir dali que artistas jovens como Paulinho da Viola ganharam projeção. Outros, como Ismael Silva e Nelson Cavaquinho, renasceram.

Amigo e parceiro, Cavaquinho acredita que Cartola escreveu mais de 600 músicas – pelo menos cinqüenta delas gravadas por artistas dos mais variados estilos, de Fagner e Beth Carvalho. Apesar dessa extraordinária criatividade, ao longo de tantos anos de carreira, ele só gravou quatro LPs. Ao seu lado, a Zica viveu feliz a tal ponto que na hora da morte dizia: “Foram 26 anos de um casamento maravilhoso, de uma paz enorme. Agora só dá para ficar com saudade. Ainda bem que a saudade não sai do coração, é coisa eterna”.

Com Cartola o samba sepultou mais um de seus botão geniais quanto pobres. Boêmios da cachaça e dos morros, do medo da polícia e do respeito aos malandros. O velho Angenor da dona Zica, Ismael Silva, Cyro Monteiro e Pixinguinha fizeram pelas ruas escuras do Rio de Janeiro uma das mais audaciosas caminhadas da história cultural do país.

Desceram o samba do morro, impuseram uma música mais brasileira ao Brasil e morreram pobres e amados pelas multidões que desfilam em seus enterros cantando e criando uma nova modalidade de manifestação poética coletiva: o enterro do sambista. Sentia-se feliz em sua casa de Jacarepaguá, ao lado da mulher Zica, vivendo com tranquilidade financeira de quem não ambiciona nada mais do que não dever a ninguém. Ainda podia doer em seu peito a marginalidade dos tempos penosos, o reconhecimento tardio, a ausência de uma fase gloriosa ainda era moço e tinha forças. Mas Angenor de Oliveira criou em torno de si um respeito reservado a poucos, pouquíssimos.

Tal respeito e veneração levaram no último dia 30 de novembro de 1980, um domingo, 2 000 pessoas, algumas cantando “As Rosas Não Falam”, ao Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, onde foi enterrado. Um surdo tocado por um membro da bateria da escola acompanhou o cortejo, cheio de artistas, como Beth Carvalho, Elizeth Cardoso, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Paulinho da Viola. Sobre o caixão, uma bandeira do Fluminense e outra da Mangueira.

Cartola morreu aos 72 anos de idade, depois de resistir a uma meningite, a duas operações na garganta, a problemas cardíacos, finalmente sucumbindo ao câncer. Nos últimos dias, quando saía de coma, insistia em dizer que gostaria de ser lembrado como o autor de suas três composições.

(Fonte: Veja, 10 de dezembro, 1980 – Edição n.º 640 – Datas – Pág; 123 – Memória – Pág; 115)

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