Anita Malfatti, foi precursora do modernismo e a primeira grande pintora brasileira

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Talento abortado

Anita Malfatti: a grande pintora que ela só foi por pouco tempo

Anita Malfatti (Foto: obviousmag.org/ Divulgação)

Anita Malfatti foi a primeira grande pintora brasileira (Foto: obviousmag.org/ Divulgação)

Anita Malfatti (São Paulo, 2 de dezembro de 1889 – São Paulo, 6 de novembro de 1964), pintora, desenhista, foi precursora do modernismo brasileiro. Ela foi a primeira grande pintora brasileira.

Filha de um engenheiro italiano com uma americana, Anita mostrou talento desde criança, quando, na sala de aula do colégio, já fazia caricaturas dos professores e dos coleguinhas. Aos 20 anos, influenciada pelos pais, que também pintavam, foi enviada para a Europa pelo tio Georg Krug, que patrocinou sues estudos de artes plásticas na Alemanha.

Na volta, todos queriam saber como era o Museu do Louvre e a Mona Lisa, mas Anita só sabia falar da exposição de arte moderna que vira em Colônia, na Alemanha. Van Gogh, Edward Munch e Gauguin eram seus assuntos prediletos. Os quadros que Anita trouxe na bagagem, nem um pouco acadêmicos, foram execrados pelo tio Krug, que não permitiu que nenhum deles fosse pendurado nas paredes de sua casa.

A pintora Anita Catarina Malfatti é um caso raro de artista que não evoluiu com o tempo. Ao contrário, foi piorando. Talento mais genuíno da geração modernista, viveu seu auge aos 28 anos, em 1917, quando se lançou como pintora em São Paulo com estardalhaço. Viam-se em sua primeira grande exposição quadros esquisitos, perturbadores, como A Ventania (1915), que tem nítidas influências de Van Gogh, ou as famosas duas versões de O Homem Amarelo (1915-1916).

Era a pintura moderna aportando na provinciana São Paulo da virada do século XX. Tão provinciana que Anita despertou reações iradas da crítica, em especial de Monteiro Lobato, que, no famoso artigo “Paranoia ou mistificação”, tachou sua exposição de “arte caricatural”. Essa reação violenta levou jovens artistas como Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade a procurar Anita para prestar-lhe solidariedade.

Formaram um grupo que mais tarde desembocaria na Semana da Arte de 22. Assim, é a pintora – e não Tarsila do Amaral com seu Abaporu (1928) ou Oswald de Andrade com seu Manifesto Antropófago – a verdadeira precursora do modernismo, mas sua fase realmente fabulosa só dura de 1915 a 1917.

Dessa fase, telas famosa como A Boba (1917) e O Farol (1916-1917), A Ventania, A Onda (1915-1917), A Estudante (1915-1916), O Japonês (1915-1916) e O Homem Amarelo, todos do período que compreende os anos de 1915 a 1917.

São obras em total sintonia com o que se fazia de mais novo na Europa de então. Destacam-se A Ventania, com suas árvores distorcidas, completamente distantes das formas do mundo real, e A Onda, que apresenta rochedos azuis e avermelhados, cores surpreendentes para o tema.

A subjetividade furiosa de Anita Malfatti, influenciada pelo expressionismo alemão, tem seu ponto alto justamente na utilização das cores. As duas versões de O Homem Amarelo, como diz o próprio título da tela, constituem um marco dessa atitude.

Nesses quadros, além de o rosto do homem ser amarelo, com nuances de verde e laranja, seus olhos são negros e vermelhos. Sem falar nos traços angulosos das feições do personagem, também presentes no Retrato de Mário de Andrade (1922).

INGENUIDADE – O contraste é grande com as obras que a artista pintou em sua fase madura. Primeiro, transformou-se numa retratista burocrática, que investia em representações muito próximas do real. São dessa fase, compreendida entre os anos de 1923 e 1940, obras como Veneza, Canaleto (1924), A Japonesa (1924) e Retrato de Mário de Andrade Filho (1935). Numa terceira fase, nas décadas de 40 e 50, quando Anita já estava bastante distanciada de qualquer coisa que pudesse ser identificada como vanguarda artística, surgem quadros que retratam a vida pacata de pequenas cidades do interior e festejos populares.

É o caso de Procissão, uma tela ingênua, próxima da arte primitiva, em que ramos de flores coloridas flutuam no céu e dois anjinhos observam, do alto, os fiéis que se movimentam na terra. Parece um Heitor dos Prazeres malfeito. Anita, ao regredir em seu caminho artístico, acabou sendo superada por suas rivais.

No ano de 1917, quando Anita viveu o auge de sua carreira e, sem planejar, desencadeou a primeira reunião de artistas modernistas. Essa polêmica, tão boa para a arte brasileira, para Anita Malfatti foi ruim. Ela ficou magoada com as críticas e, insegura, passou a sentir necessidade de ter sua arte aceita pela sociedade.

Mais tarde, com as críticas demolidoras de sua exposição de 1917 e talvez por sentir-se “devedora” com a família – e principalmente o tio -, Anita tentou fazer uma pintura um pouco mais aceitável. Conseguiu – e sua arte perdeu com isso.

DEFORMAÇÃO – Anita tinha uma grande necessidade de aceitação, que não era relacionada apenas com sua obra. Ela era portadora de uma deformação congênita na mão e no antebraço direitos, uma espécie de atrofia, que a obrigou a desenvolver habilidades com a mão esquerda. Em público, nunca deixava sua mão defeituosa à vista – trazia sempre um lenço que a cobria. Nunca se casou nem teve namorados. Fazer uma arte da qual os outros pudessem gostar era, possivelmente, uma tentativa que Anita empreendeu para ser amada, de qualquer maneira que fosse.

A deformidade física também ecos em sua obra. E talvez seja a única marca constante em todas as fases de seu trabalho. Em seus quadros do período de 1915 a 1917, nenhum personagem deixa as mãos completamente à mostra. Em outras fases, algumas vezes as mãos estão até presentes no quadro, mas suas personagens são, em geral, mulheres solitárias como ela mesma.

Caso de Interior de Mônaco (1925), por exemplo, tela que utiliza muito bem diferentes tipos de padronagens, numa clara influência do fauvismo, e apresenta uma mulher sozinha, de costas para o mundo.

Além das obras da artista, há também  documentos pessoais e uma fotobiografia da pintora. Cartas escritas a ela por Mário de Andrade, catálogos de suas primeiras exposições e até sua carteira de identidade. Nas fotografias, que mostram desde a Anita criança, em 1892, na Itália, até imagens de sua velhice, ela nunca se deixa captar com a mão defeituosa exposta.

Um capricho de quem, apesar de não ser exatamente feia, se sentia-se ofuscada por outras mulheres, como a própria amiga Tarsila do Amaral, que era bonita, rica e casada com Oswald de Andrade. Para sentir-se melhor com tantas adversidades, Anita até mentia a idade: sua data de nascimento era 2 de dezembro de 1889, mas costumava divulgar que havia nascido em 1896.

Dores da alma que provocaram o embotamento de um talento que, ao florescer, parecia ser genial. Anita foi a grande pintora que o Brasil não teve. O que fez no seu curto período de brilho, no entanto, valeu por muitas carreiras inteiras.

(Fonte: Veja, 20 de março de 1996 – ANO – Nº – Edição 1436 – ARTE/ Por Marcelo Camacho – Pág: 122/123)

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