O senador foi morto pelo pai de Fernando Collor no Congresso Nacional
Há 60 anos, pai de ex-presidente Fernando Collor matou colega no Senado, mas saiu impune
Arnon de Mello, pai de Collor que matou senador. (Imagem: Reprodução/OAM)
Parlamentar acreano de 39 anos foi baleado durante duelo entre Arnon de Mello e rival alagoano durante sessão no Senado
Arnon Afonso de Farias de Mello (Rio Largo, 19 de setembro de 1911 — Maceió, 29 de setembro de 1983), jornalista, empresário e advogado, foi senador alagoano, e pai do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Parlamentar acreano de 39 anos foi baleado durante duelo entre Arnon de Mello e rival alagoano durante sessão no Senado.
Em 4 de dezembro de 1963, o alagoano e então senador Arnon de Mello puxou uma arma enquanto discursava no plenário do Senado, disparou três vezes e acertou o colega José Kairala, do Acre, que morreu. Arnon nunca foi cassado ou condenado porque a justiça considerou “crime acidental”.
Os ares no Senado Federal estavam carregados naquela quarta-feira. A rixa entre dois parlamentares alagoanos de famílias rivais tinha chegado ao limite. Desde que fora eleito, o senador Arnon de Melo (PDC), pai do então adolescente Fernando Collor de Mello, vinha sendo hostilizado e insultado por seu colega Silvestre Péricles de Góis Monteiro (PST), militar, ex-delegado e herdeiro de uma família com história na política nacional. Segundo relatos, Silvestre planejava matar seu adversário se ele subisse na tribuna para discursar. Portanto, no dia 4 de dezembro de 1963, há 60 anos, quando Arnon faria o discurso de abertura da sessão, o clima era de duelo de faroeste em pleno Congresso Nacional.
Então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade havia tomado as providências cabíveis. Mandou impedir o ingresso de “pessoas suspeitas” na Casa, determinou a revista de todos que quisessem ingressar nas galerias e espalhou guardas à paisana pelas dependências. De acordo com reportagem do GLOBO na época, o filho mais velho de Arnon, Leopoldo Collor de Melo, de 22 anos, foi desarmado por um segurança antes de entrar. Ficou na mesma galera onde estava um genro de Silvestre, oficial do Exército. Mesmo com as precauções, havia o receio de que capangas das duas famílias tinham sido trazidos de Alagoas para Brasília e estariam prontos pra agir em caso de confronto.
Como de hábito, o senador do PST chegou cedo no Parlamento, passou na sala do café e foi cuidar da sua correspondência. Já o pedecista, visivelmente ansioso, entrou no gabinete de Moura Andrade para dizer que só iria à tribuna quando estivesse presente o seu rival. Ao soar da sirene, chamando os senadores para a sessão, Péricles deixou sua sala e se dirigiu para o plenário, onde já se encontrava Arnon. Com ar de tranquilidade, o autor das ameaças passou na bancada dos jornalistas, jogou alguns sorrisos, conversou brevemente com o senador e empresário pernambucano José Ermírio de Moraes e ficou de pé, permanecendo com o paletó sugestivamente desabotoado.
As galerias estavam lotadas e inquietas. Fazendo cessar o burburinho, Moura Andrade abriu a sessão avisando que a Mesa faria de tudo, “nos limites máximos de sua força”, para manter a ordem. “Se por ventura, alguém perturbar a ordem, será posto imediatamente sob custódia”, disse ele ao microfone.
O relógio da Casa marcava as 15h quando Arnon de Melo subiu na tribuna e tomou a palavra, visivelmente exasperado. Alguma coisa muito grave estava para acontecer, mas ninguém imaginava o que seria. “Senhor presidente, permita vossa excelência que eu faça meu discurso olhando na direção do senhor senador Silvestre Péricles de Gois Monteiro, que ameaçou de me matar, hoje, ao começar meu discurso”. Foi tudo muito rápido. Nem bem o pai de Collor iniciara a sua fala, e seu arquirrival já havia começado a marchar decididamente e com expressão furiosa na sua direção. Quando chegou perto da tribuna, com o dedo em riste, gritou: “Filho da puta!”.
No mesmo instante, Arnon sacou sua arma e disparou. Foram dois tiros, mas ele não atingiu Péricles, que havia se atirado no chão e puxara seu revólver. O pânico estava instalado, muita gente corria para se proteger, enquanto outros senadores tentavam apartar o duelo. Silvestre se arrastava entre as poltronas, tentando fazer pontaria. Foi quando o parlamentar paraibano João Agripino se lançou sobre ele e conseguiu tomar-lhe a arma. Ouviu-se mais um tiro. A campainha do Senado soava em disparada, misturando-se à gritaria. Quando o presidente da Casa reassumiu o microfone dizendo “Basta!” e pedindo que removessem os dois rivais do plenário, alguém gritou: “Há um ferido, excelência!”.
Consternados, os presentes constatavam o senador acreano José Kairala (PSD) no chão, baleado no ventre. Pobre Kairala. Comerciante de 39 anos, elegera-se suplente do ex-governador José Guiomard, ocupava a cadeira dele desde julho de 1963, substituindo o titular, que estava de licença. Aquele 4 de dezembro era seu último dia no Senado e ele tinha levado mulher e filhos para sua despedida. Acabou recebendo o segundo disparo de Arnon, ao se jogar sobre Péricles para evitar seu revide. Enquanto o plenário se acalmava, Kairala se esvaía. Ele foi levado ao hospital e operado, recebeu todo o estoque de sangue em transfusões, mas morreu às 20h05.
O pai de Collor chegou a ficar algumas horas preso, mas foi liberado sob a alegação de que agira em legítima defesa. Em seu depoimento no Ministério da Aeronáutica, o político disse que vinha sendo ofendido e ameaçado por Péricles havia anos e que, quando começou a discursar na tribuna, viu o rival avançando sobre ele com a mão na cintura, como se estivesse pegando a arma. Arnon se recusou a reconhecer que partira de sua arma o tiro que atingiu Kairala, mas disse que não se lembrava se havia disparado um ou dois tiros, porque fora rapidamente agarrado por colegas. Já Péricles afirmou que poderia ter matado o rival, mas não o fez com medo de atingir outra pessoa em meio à confusão.
O que aconteceu
Arnon não queria, naquele 4 de dezembro de 1963, matar Kairala, mas, sim, outro colega conterrâneo: o senador Silvestre Péricles de Góis Monteiro, desafeto político e pessoal em Alagoas.
A rixa entre eles era antiga e vinha antes do Senado, quando disputavam, desde a década de 1950, quem era o político mais influente de Alagoas.
Kairala, que estava sentado ao lado de Péricles, acabou sendo baleado com os tiros de Arnon. Ele foi levado ao hospital em Brasília, mas morreu no mesmo dia.
Arnon de Melo foi preso em flagrante junto com Péricles e ficou detido por sete meses (mas nesse período saía para ir às sessões do Senado). O Senado deliberou a favor da prisão no mesmo dia.
Arnon em depoimento sobre a morte de Kairala no Senado. (Imagem: Reprodução/Site História de Alagoas)
Arnom foi acusado de homicídio pela promotoria, mas foi absolvido em um julgamento considerado controverso.
Parte da decisão que inocentou Arnon foi disponibilizada pelo TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios), que julgou o caso.
Arnon alegou que havia disparado em legítima defesa, já que Péricles teria antes ameaçado atirar.
Testemunhas, porém, afirmaram que Péricles não tinha arma em mãos e que não havia feito nenhuma ameaça. Foram três tiros disparados.
A sentença foi dada em 16 de abril de 1964 pelo juiz presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Djalmani Calafange Castelo Branco. Ele inocentou Arnon de Mello.
Ele foi inocentado em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1964, quando foi libertado.
O entendimento na época, diz o TJ-DF, foi que o “homicídio praticado em legítima defesa ou estado de necessidade não constitui crime, mas fato lícito (…) não é crime doloso contra a vida.” Isso, diz ainda, está “fora do alcance do Tribunal do Júri.”
Arnon foi então solto, e o Senado não cassou o seu mandato. O entendimento da casa foi o mesmo: de que ele teria agido em legítima defesa. Um processo chegou a ser aberto contra ele na casa, mas foi rejeitado em 1964.
Apesar do crime, ele ainda foi senador novamente reeleito em 1971 e 1979. Arnon morreu sem nunca ter sido condenado pela morte do colega.
Capa do jornal Última Hora um dia após crime no Senado. (Imagem: Biblioteca Nacional)
Como foi na hora o crime
Ainda segundo informações do TJ-DF , Silvestre Péricles ameaçou Arnon, durante discurso na bancada do Senado.
Ao saber disso, Arnon pediu ao presidente da casa para também fazer um discurso na bancada. Pediu para fazê-lo voltado para o senador Silvestre Péricles, que se levantou na direção de Arnon.
Durante o discurso de Arnon de Mello, os dois fizeram o gesto de sacar uma arma do bolso, “mas apenas Arnon de Mello de fato a retirou, disparando, sem qualquer mira, na direção de Silvestre que se abaixou rapidamente.”
José Kairala havia sido eleito suplente do senador José Guiomard, que estava de licença. Era seu último dia no Senado quando foi assassinado por Arnon.
Quem era Kairala
Kairala era um comerciante no Acre e entrou para a política em 1958, quando foi eleito deputado estadual. Em 1962, foi eleito suplente de senador. Ele era casado e tinha dois filhos.
Senador José Kairala. (Imagem: Reprodução/História de Alagoas)
O Senado aprovou uma uma norma assegurando o pagamento dos custos com educação até o ensino secundário (hoje ensino médio) aos filhos de Kairala pela morte “em circunstância trágica” e “em pleno exercício do mandato, quando participava de Sessão plenária desta Casa.”
A morte de Kairala foi um evento marcante na história do Brasil e marcou o início de uma era de violência política no país, que culminou no golpe militar de 1964.
Tiroteio no Senado: pai de Collor matou colega no plenário e saiu impune
Em 1963, rixa entre senadores alagoanos descambou em tiroteio que terminou com a morte de José Kairala; Arnon de Mello, autor dos disparos e pai de Fernando Collor, alegou legítima defesa e foi absolvido
Arnon de Mello (PDC-AL) estava tenso antes de usar o microfone do Senado Federal naquele 4 de dezembro de 1963: se decidisse mesmo discursar, o faria sob jura de morte. Horas antes do início da sessão, num telefonema anônimo, havia sido informado de que o senador Silvestre Péricles (PTB-AL), na sala do café do Senado, apregoava que, se Arnon falasse naquele dia, “encheria sua boca de balas”.
A rixa entre os dois não só era conhecida como assombrava aquela legislatura do Senado Federal. Silvestre Péricles de Góis Monteiro e Arnon de Mello eram arquirrivais na política alagoana há mais de uma década. Tudo havia começado em 1950, quando a família Góis Monteiro, que dominava a política local, se encontrava rachada. Ismar, irmão de Silvestre Péricles, decidiu apoiar Arnon de Mello para o governo estadual, esnobando a candidatura indicada pelo grupo do irmão. Desde então, ano a ano, a rivalidade entre Mello e Góis Monteiro escalava para níveis cada vez mais tensos.
Na manhã do dia 4, a ameaça de Silvestre Péricles foi correndo à boca pequena e chegou aos ouvidos do senador paulista Lino de Matos (PTN), que se espantou com o teor da expressão e foi confirmá-la com o próprio Góis Monteiro. Ao questioná-lo se aquilo era verdade, um furioso Silvestre Péricles garantiu a Matos que, sim, encheria de balas a boca de Arnon de Mello se o desafeto tomasse a palavra. Lino de Matos achou melhor avisar o presidente do Senado, o colega de São Paulo Auro de Moura Andrade (PSD).
Moura Andrade já havia tomado medidas de segurança excepcionais para aquele dia, em face dos boatos de que capangas alagoanos estariam no Congresso Nacional para ajudar seus clãs se o conflito chegasse às vias de fato. Além de uma revista mais rigorosa para acessar a galeria do público, guardas à paisana estavam espalhados pelo recinto. Com o recado de Lino de Matos, porém, Auro achou melhor emitir um aviso incomum antes de ceder a palavra a Arnon de Mello, o primeiro a falar naquela sessão.
“A presidência precisa declarar que manterá a ordem e o respeito indispensáveis no Senado, nos limites máximos de sua força”, afirmou Moura Andrade. Em seguida, passava a considerar que algum ilícito estivesse prestes a acontecer. “Se houver qualquer delito, será imediatamente aberto inquérito e lavrado o auto de flagrante”, completou o presidente do Congresso. “Isto é provocação”, confessou Góis Monteiro ao colega José Kairala (PSD-AC), um jovem e simpático senador em exercício que, em resposta, lhe pediu calma.
Arnon tomou a palavra às 15 horas e 3 minutos. “Presidente”, disse Mello, “permita que eu faça o meu discurso olhando na direção do senador Silvestre Péricles de Góis Monteiro, que ameaçou me matar, hoje, ao começar o meu discurso…” Neste momento, interrompeu a fala. Notou que Silvestre Péricles vinha rumando ao seu encontro com o braço direito erguido, o dedo em riste e a garganta saltada pelos sucessivos gritos de “crápula”. Arnon sacou o revólver e, mirando o desafeto, disparou duas vezes.
Estava instalado o tumulto. Góis Monteiro agachou rapidamente e saiu ileso. Enquanto os guardas do Senado tentavam imobilizar Arnon, ele acabou atirando pela terceira vez. Silvestre Péricles, escorado entre as cadeiras da bancada, sacou o revólver e seguiu ao encontro de Mello. Achou um ângulo, mirou no desafeto e estava prestes a atirar. Era só apertar o gatilho, pois o mecanismo do revólver já estava acionado.
Subitamente, surge o senador João Agripino (UDN-PB), que se joga em cima de Góis Monteiro e, empunhando a arma do alagoano, trava o percursor do revólver com o dedo, impedindo o disparo. Agora, ambos estavam imobilizados e o susto parecia ter passado. Mas havia um ferido: José Kairala, que estava a poucos metros de Silvestre Péricles, foi atingido no primeiro tiro.
Tiroteio no Senado
À direita, o senador João Agripino (UDN-PB) segura a arma de Silvestre Péricles. Arnon de Melo e Silvestre Péricles foram presos por ordem do presidente do Senado Auro Moura Andrade. (Foto: Efraim Frajmund/Estadão)
Vítima era senador por acaso naquele dia
Kairala José Kairala tinha 39 anos e estava em exercício do mandato por acaso. Nasceu em Manaus, mas se mudou com 1 ano de idade para Brasiléia, na fronteira do Acre com a Bolívia, onde foi comerciante e prefeito. Era o suplente de José Guiomard (PSD-AC), que estava licenciado para tratar uma pneumonia.
Havia assumido a cadeira no Senado em 4 de julho daquele ano e estava empolgado com a oportunidade. De acordo com o senador Adalberto Sena (PTB-AC), Guiomard pretendia reassumir o mandato no mês anterior à tragédia, mas, a pedido do próprio Kairala, concordou em adiar o retorno ao Congresso.
A licença de José Guiomard expirou no dia 3 de dezembro. Anos depois, em seu livro de memórias, Auro de Moura Andrade afirmou que, naquela terça-feira, José Kairala o procurou em seu gabinete e pediu permissão para comparecer à sessão do dia seguinte. Alegou que o titular só chegaria em Brasília no dia 5 e, além de tudo, gostaria que a família estivesse presente para acompanhar seu último dia como senador. Auro permitiu que Kairala estivesse no plenário, desde que não tomasse a palavra nem votasse na ordem do dia.
Após o tiro, o suplente foi levado às pressas para o Hospital Distrital de Brasília, que fica a cinco quilômetros do Congresso Nacional. Os detalhes quanto ao translado são incertos. Numa versão, é dito que o transporte foi feito na ambulância do Senado; em outra fonte, a corrida ao hospital teria sido no carro nº 80 do Senado Federal, da liderança do Partido Trabalhista Brasileiro.
Kairala veio a óbito às 20 horas e 5 minutos, na sexta parada cardíaca e após sucessivas transfusões. O estoque de plasma do hospital foi esgotado e mais de 15 litros de sangue foram utilizados no processo. Durante a tarde, diversos parlamentares haviam se prontificado a doar sangue na tentativa de salvar o colega, que deixou três filhos pequenos e uma viúva grávida de 7 meses.
Tragédia anunciada diante dos ânimos exaltados
“Era uma tragédia anunciada”, diz Thayná Alexandre, pesquisadora e mestre em História pela Universidade Federal do Alagoas (UFAL), sobre o tiroteio em pleno Senado. Thayná é autora de uma dissertação de mestrado sobre a trajetória política de Arnon de Mello e explica que o encontro dos arquirrivais alagoanos no Senado Federal causava apreensão desde o início da legislatura. “Todo mundo já esperava que alguma coisa fosse acontecer entre o Silvestre Péricles e o Arnon de Mello. Eram duas figuras que já vinham trocando ameaças há muito tempo, um dizendo pro outro que partiria para as vias de fato”, afirma a pesquisadora.
O clima para o início da legislatura era o pior possível. Em 1962, enquanto ainda era candidato ao Senado, Arnon foi ameaçado por Silvestre Péricles. Se fosse eleito, segundo Góis Monteiro, “levaria um tiro na cara” no dia da posse. Venceu as eleições e, em janeiro de 1963, encaminhou um telegrama ao presidente do Senado rechaçando as bravatas. Silvestre Péricles estava no Plenário neste momento. “Então o Arnon pensa que eu sou bicho-papão? Não sou nada disso”, reagiu o senador. E, empunhando um livro de poesias que havia acabado de lançar, virou-se para um repórter e disse: “Eu sou o poeta do amor e da saudade!”.
Poeta ou não, o serviço de segurança do Senado foi reforçado. Apesar da apreensão, Arnon e Silvestre Péricles não chegaram às vias de fato e a posse ocorreu sem maiores incidentes.
Tempo e convivência não resolveram o conflito
Dias depois da posse, ao jornal carioca Diário da Noite, o presidente Auro de Moura Andrade orgulhou-se de ter adotado “as mais rigorosas providências” para evitar o “conflito armado que se anunciava” entre os dois desafetos. Estava esperançoso: disse que, com o devido tempo e convivência, os alagoanos se resolveriam.
Moura Andrade, no entanto, foi desmentido ao longo do ano. Se era questão de convivência, não adiantou: cinco poltronas separavam Arnon de Silvestre, mas a rixa não esfriou. Nem o tempo adiantou: em agosto, Arnon foi nomeado para representar o Brasil em conferências internacionais entre parlamentares. Passou um bom período fora do País e Silvestre Péricles aproveitou a ausência do rival para carregar ainda mais suas bravatas.
Antecedentes imediatos incluíram representação no exterior
Segundo o senador Milton Campos (UDN-MG), proeminente político da época e presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), teria sido a nomeação de Arnon para representar o Brasil no estrangeiro o motivo do acirramento dos ânimos de Silvestre para com Arnon. Campos deu esse palpite no depoimento que prestou à Justiça, no qual relembrou um antecedente imediato à tragédia: o embate de Góis Monteiro com a CCJ.
Se era mesmo o “poeta do amor e da saudade”, Silvestre se valia repetidas vezes de palavras de baixo calão. Havia uma cláusula no Regimento Interno do Senado Federal que proibia a transcrição de palavras impróprias para o Diário Oficial, mas Góis Monteiro as utilizava na tribuna e fazia questão de vê-las publicadas. Para emplacar as ofensas, chegou a entrar em conflito com a CCJ, mas foi voz vencida e, hoje, não se sabe o que ele teria dito contra Arnon.
Episódio gerou proibição de porte de arma no Senado
O homicídio em pleno Congresso Nacional chocou a opinião pública. O Senado reagiu com a aprovação imediata de duas resoluções. A primeira delas, votada no dia seguinte ao crime, proibia o porte de arma nas dependências do Senado. Quando Arnon de Mello pediu para falar na direção do senador Góis Monteiro, não era mera provocação: no Regimento Interno, proibia-se que um senador discursasse na direção de um colega. O porte de arma, por sua vez, era permitido até ali.
Em 8 de dezembro, foi aprovada uma resolução que lavrou o flagrante do homicídio, levando os senadores envolvidos à prisão. Nas horas que antecederam a aprovação do projeto, líderes do Senado discutiam intensamente sobre a cassação ou não dos mandatos de Arnon e Silvestre Péricles. Predominou o entendimento de que a eventual perda dos cargos seria uma decisão da Justiça.
Por fim, um projeto de resolução apresentado em 1963 previa o pagamento, às custas do Senado Federal, da escola primária e secundária dos filhos do senador Kairala. Essa medida, no entanto, ficou quase dois anos parada, sendo aprovada apenas em novembro de 1965.
Prisões, inquérito e júri
Arnon e Silvestre Péricles permaneceram presos em locais separados. Arnon ficou detido na Base Aérea de Brasília; Silvestre Péricles, no Batalhão de Guardas Presidencial. Segundo reportagens da época, nos dias em que esteve preso, Góis Monteiro não se separava de seu revólver calibre 38, incomodando os guardas do Batalhão. E o senador continuou com as bravatas, dizendo que, ao sair da prisão, mataria o juiz. “Tratarei urgentemente de meu testamento”, reagiu com bom humor Waldir Meuren, responsável pelo processo na Primeira Vara Criminal de Brasília.
Nas primeiras semanas de 1964, 18 testemunhas foram ouvidas: 8 apontadas pelo Ministério Público (MP), 8 por Arnon e 2 por Silvestre Péricles. Em 26 de fevereiro de 1964, o MP emitiu seu parecer por meio do promotor Sepúlveda Pertence. Nos anos seguintes, ele viria a ser um dos maiores juristas da história do País e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Durante 27 anos, Sepúlveda Pertence dividiu o plenário do STF com o ministro Marco Aurélio Mello, sobrinho de Arnon.
Pertence solicitou a pronúncia dos dois denunciados. No jargão jurídico, a pronúncia é um aval para que os acusados sejam levados a júri popular. Segundo o promotor, Arnon deveria ser processado pois, de forma inconteste, havia saído de sua arma o disparo que vitimou o senador Kairala. Silvestre Péricles, por sua vez, deveria ser pronunciado por tentativa de homicídio, pois estava prestes a atirar no desafeto e só não o fez pela súbita intervenção de João Agripino.
Caso virou e garantiu a impunidade dos dois envolvidos
Em 17 de abril de 1964, o juiz sumariante Djalmani Castelo Branco deu sua sentença: Silvestre Péricles foi impronunciado; Arnon de Mello, por sua vez, foi pronunciado e iria ao júri popular. Góis Monteiro, de fato, estava prestes a alvejar Arnon, mas, no entendimento do juiz, não poderia ser julgado por tentativa de homicídio pois não chegou a apertar o gatilho. A Silvestre Péricles, Djalmani atribuiu apenas uma responsabilidade moral pelo incidente. Na avaliação de Castelo Branco, Arnon havia incorrido na prática de homicídio por aberratio ictus, isto é, “erro na execução”. Mello não acertou o alvo que pretendia, mas deveria responder como se tivesse praticado o crime contra a pessoa visada.
Dias depois, contudo, a defesa de Arnon interpôs recurso e obteve vitórias decisivas. Em 16 de junho, o promotor Milton Sebastião Barbosa acatou uma alegação dos advogados que mudava a natureza do homicídio de doloso para culposo. O tribunal do júri só pode julgar crimes dolosos. Para completar, em 29 de junho de 1964, o réu foi absolvido por unanimidade, prevalecendo a tese de que havia agido em legítima defesa.
Volta ao Senado com calma, bom humor e cumprimentos
Arnon foi solto horas depois da absolvição e, no dia seguinte, voltou ao Senado Federal. No retorno ao Congresso, foi noticiado que recebeu “efusivos cumprimentos” dos colegas. Silvestre Péricles já estava solto desde a impronúncia e retornou ao Senado em 7 de julho. Estava abatido por uma recente cirurgia, mas aparentava calma e bom humor.
Parecia que nada havia acontecido meses antes, ao que José Guiomard, o titular da cadeira que Kairala ocupou, protestou publicamente. Tomou a palavra para reclamar da morte esquecida do colega. “Alguém ignora que aqui dentro foi ferido de morte um ilustre homem público? Acho que ninguém. Morreu de colapso? Certo que não. O que houve foi bala”, provocou Guiomard. “Mas até hoje não se aponta ninguém culpado, pois a Justiça impronunciou, absolveu todo mundo – o único condenado, condenado à morte, foi José Kairala”.
Sem condenados e sem indenização à família da vítima
Com a impronúncia de Silvestre e a absolvição de Arnon por legítima defesa, não restaram imputáveis para o pagamento de indenizações à viúva e aos quatro órfãos. Em 1988, a revista Veja localizou a família do senador assassinado e revelou as dificuldades financeiras da viúva para criar os quatro filhos. “A rixa entre duas pessoas que nada tinham a ver com minha família e a irresponsabilidade de dois políticos em entrar armados no Congresso Nacional me transformaram de mulher de senador em lavadeira e babá”, reclamou a viúva de Kairala à revista. “Para não ver meus filhos passarem fome, arregacei as mangas e fui para o tanque lavar roupas para os outros”.
Ela chegou a processar Arnon de Mello e a União para o pagamento da pensão. Absolvido na Justiça de Brasília, Arnon se eximiu de qualquer custeio. A União também não quis indenizar a família. A viúva recorreu e, no trâmite das instâncias superiores, perdeu qualquer pagamento de vista.
Com golpe, país mudou enquanto eles estiveram detidos
Arnon e Silvestre Péricles retornaram da reclusão em um mundo político completamente diferente do que haviam vivido até dezembro de 1963. Da cadeia, os alagoanos assistiram às transformações políticas e sociais do período: Arnon era entusiasta do golpe militar; Silvestre Péricles, apoiador das reformas de base. João Goulart havia sido deposto em 1 de abril e o País, agora, vivia os primeiros meses do que viria a ser o maior regime de exceção de toda a sua história.
Góis Monteiro permaneceu no Senado até 1967. Em 1966, perdeu a recondução para Teotônio Vilela e se aposentou da vida pública. Além de senador, havia sido deputado federal, governador de Alagoas e ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). O poeta do amor e da saudade morreu em 1972.
Arnon de Mello foi senador até morrer, em 1983. Durante o período em que esteve detido, os filhos mais velhos estiveram ao seu lado, ocupando-se da sua correspondência. Os filhos mais jovens – Pedro, futuro delator, e Fernando, futuro presidente do Brasil – permaneceram no Rio de Janeiro.
Caminhos cruzados com o médico que atendeu a vítima
Na época do tiroteio, Fernando Collor ainda era um adolescente e estudava no colégio carioca São José. Anos depois, seguiria os passos do pai, trilhando um caminho além: foi eleito prefeito de Maceió, deputado federal, governador de Alagoas e, em 1990, chegou ao Palácio do Planalto. Também viria a ser senador por dois mandatos, entre 2007 e 2023.
Em 1992, seu último ano na presidência, houve uma dança das cadeiras no Ministério da Saúde. Em 11 meses, quatro ministros assumiram a pasta. O penúltimo deles foi o cardiologista Adib Jatene, conhecido em Brasília por ser o cirurgião dos mais importantes políticos do País. Quanto a Fernando Collor, porém, havia tido pouco contato. O ministro alegou que, antes da nomeação, tinha se encontrado com o então presidente apenas quatro vezes.
Apesar do contato restrito, há de se dizer que Jatene, na verdade, já havia cruzado com o destino da família Collor três décadas antes. Na tarde de 4 de dezembro de 1963, no Hospital Distrital de Brasília, foi Adib Jatene quem atendeu o senador José Kairala, ferido à bala por Arnon de Mello, pai de Fernando.
Arnon de Mello faleceu em 29 de setembro de 1983, sem nunca ter sido condenado pela morte do colega.
(Créditos autorais: https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/post/2023/12 – BLOG DO ACERVO – 04/12/2023)
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