A arte da geometria
A trajetória da designer carioca Bea Feitler
Ícone do design, Bea Feitler marcou uma geração com seu trabalho
Beatriz Feitler (Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 1938 – 8 de abril 1982), talento revolucionário para o design gráfico e diretora de arte, foi diretora de arte da revista “Harper’s Bazaar” por dez anos, entre 1961 e 1971, responsável pelo lançamento arrebatador da revista feminista “Ms.” e criadora de todo o projeto gráfico da luxuosa “Vanity Fair”.
Nascida em fevereiro de 1938 no Rio de Janeiro, Bea Feitler foi a primogênita de um casal de judeus que escapou da Alemanha nazista. Cresceu em Ipanema e se formou pela Parsons School of Design, em Nova York.
Cresceu numa atmosfera cultivada por arte, livros e música clássica – ópera e balé sempre foram suas paixões. Em 1957, ao contrário do que faziam as moças da época – que aos 19 anos se preparavam para casar -, Bea foi estudar design na prestigiosa Parsons School of Design, em Nova York.
Passou os três anos seguintes envolvida com o que ela explicou em carta para uma amiga como: “Propaganda, desenhos de pacotes para supermarkets, capas para livros, discos etc. É bastante interessante”.
A carioca Beatriz Feitler, ou Bea, como ficou conhecida, é uma das principais referências do design gráfico mundial, responsável por momentos históricos de publicações como “Harper’s Bazaar”, “Ms.”, “Rolling Stone” e “Vanity Fair” – foi dela o projeto gráfico original da revista.
Também trabalhou em estreita colaboração com mestres da fotografia como o francês Jacques Henri Lartigue, o japonês Hiro e o americano Richard Avedon, além de ter alavancado a carreira dos hoje clássicos Bruce Weber e Annie Leibovitz.
Trabalhou pouco no Brasil. Quando voltou ao Rio de Janeiro, em 1959, logo depois de obter o diploma americano, pediu emprego a Carlos Scliar (1920-2001), diretor de arte e entrou para a equipe da recém-lançada revista “Senhor” e emplacou três capas.
Passaria apenas um ano trabalhando no Brasil, mas foi o suficiente para deixar sua marca no mercado. Além da Senhor, desenhou capas de livros e cartazes para teatro e galerias de arte.
Depois da “Senhor”, Bea montou com o cartunista Jaguar e o artista plástico Glauco Rodrigues o Studio G, especializado no design de cartazes, discos e livros, mas a empreitada durou pouco.
— Fui a primeira pessoa a recebê-la na revista — lembra o cartunista Jaguar. — Ela era alta, morena e dona de um corpo escultural. Chamava uma atenção danada e ainda tinha um portfólio impressionante. Coisa de menina-gênio mesmo.
— Bea era tão vanguardista que nosso negócio não deu certo — ri Jaguar. — Eu me lembro de termos feito o design de uma sapataria em Copacabana… Era lindo, mas tão moderno que o dono da loja teve que se desfazer dele em pouco tempo para evitar rebuliço.
Mas sua aventura profissional começou realmente quando voltou a Nova York em 1960 e acabou sendo contratada pela “Harper’s Bazaar” – conhecida tanto pelo apuro como pela ousadia visual, uma herança do celebrado diretor de arte Alexey Brodovich (1898-1971), um dos ídolos de Bea.
Em 1961, Bea voltou aos EUA e, aos 25 anos, a convite de um ex-professor de faculdade Marvin Israel (1924-1984), entrou para a equipe da “Harper’s”. O sucesso veio tão rápido que, dois anos mais tarde, assumiu o cargo dele. Foi aí que, ao lado da codiretora de arte da revista Ruth Ansel, deslanchou. Pôde abusar da tipografia (muitas vezes como matéria-prima para criar uma ilustração) e das páginas duplas.
Dividindo a direção de arte da revista com outra jovem, a americana Ruth Ansel, Bea literalmente fez história ao traduzir a energia pulsante da década em linguagem gráfica para reportagens e editoriais de moda. No início dos anos 70, pouco antes de sua saída da Baazar – a direção decidiu que suas experimentações eram pouco comerciais -, Bea elaborou o projeto gráfico de uma revista feminina para a Editora Abril, a Setenta, de curta duração porém grande impacto.
Aos 33 anos, Bea estourava no jet-set nova-iorquino tanto quanto nas publicações de moda, e isso lhe valeu um convite da jornalista Gloria Steinem para lançar a revista “Ms.”, espécie de porta-voz do movimento feminista. Em apenas oito dias, a primeira edição vendeu 300 mil exemplares e gerou 26 mil assinaturas. Os amigos de Bea disseram que o trabalho dela contribuiu para isso.
Prova disso é a célebre capa da edição de janeiro de 1981, que mostra John Lennon nu enroscado em sua mulher, Yoko Ono. Bea eliminou as chamadas de capa e manteve apenas o logotipo sobre a foto de Annie Leibovitz.
Bea Feitler morreria apenas um ano depois, de câncer de pulmão, no Rio de Janeiro, aos 44 anos. Havia acabado de realizar o design da Vanity Fair e deixava um legado de inúmeras páginas de revistas, livros de artes, capas de discos, cartazes de espetáculos e uma personalidade esfuziante.
No hospital, criou a ‘Vanity Fair’
Aos 36 anos, aproximou-se de Annie Leibovitz. O primeiro contato foi uma encomenda de foto da atriz Lily Tomlyn para a capa da “Ms.”. As duas concordaram que “a melhor foto” era aquela em que Lily aparecia de braços para cima e com os pêlos das axilas à mostra. A revista não quis publicar a imagem.
Depois disso, a relação delas se fortaleceu, e Bea passou a editar reportagens especiais da “Rolling Stone”, onde Annie era editora de fotografia. Foi de Bea a ideia de dar à “RS” o formato tabloide que dura até hoje.
Aos 43, um ano antes de morrer vítima de um câncer, Bea deu aquele que seria seu maior passo. Concebeu do zero, a pedido da editora Condé Nast, o projeto gráfico da “Vanity Fair”. Trabalhou no hospital e deixou tudo pronto para a primeira edição, de março de 1983, que não chegaria a ver.
“Bea foi a melhor diretora de arte que conheci”, afirmou, em entrevista a Bruno, o fotógrafo brasileiro Otto Stupakoff, morto em 2009. “Ela sentia uma responsabilidade pedagógica em relação ao fotógrafo. Não só o ajudava a encontrar seu estilo, como também o ajudava a se desenvolver como profissional.”
E não era só com ele que Bea se comportava assim. Em seu escritório, costumava manter pastas com o nome de cada profissional com que trabalhava. Quando via uma imagem que poderia inspirar algum deles a guardava na respectiva pasta.
O livro “O design de Bea Feitler” conta, por exemplo, que ela chegou a levar o fotógrafo Bill Silano seis vezes ao cinema para que assistisse ao clássico “Um Homem e uma Mulher”, de Claude Lelouch. Ela queria que Silano levasse para a “Harper’s” a lógica do cinema, de imagens em sequência. E conseguiu. Silano ganhou fama por isso.
Uma de suas marcas, aliás, era o humor despachado com que avaliava o próprio trabalho: “Não importa o que faça, quão comercial ou estético, tudo sai de minhas tripas”, dizia. Um talento intenso e intensamente pessoal.
(Fonte: Veja, 13 de junho de 2012 – ANO 45 – Nº 24 – Edição 2 273 – LIVROS/ Por Mario Mendes – “O Design de Bea Feitler”, professor Bruno Feitler – Pág: 135/137)
(Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura – CULTURA / POR CRISTINA TARDÁGUILA – 08/06/2012)