Um projeto livre para o cinema
Curta-metragem incorpora o espírito do software livre à própria produção, usando até uma câmera “open source”.
Brasileiro faz primeiro filme narrativo com câmera livre
O paulistano Flávio Soares, queria gravar um curta-metragem usando software livre. Estudando formas mais baratas e menos problemáticas de fazer um filme para o cinema, ele se deparou com a Elphel, uma câmera desenvolvida pelo físico russo Andrey Filippov, conhecida por ter toda a sua documentação aberta. Os softwares internos estão disponíveis na internet sob licença GNU GPL (General Public License), o tipo mais comum para designar criações que podem ser copiadas e alteradas sem pagamento de royalties.
Quando a Elphel entrou em cena, o curta-metragem Floresta Vermelha passou a ser coadjuvante na história pioneira de criar um filme narrativo usando não apenas uma câmera aberta, mas também softwares de edição livres e um site de crowdfunding para obter recursos para a empreitada. As pessoas começaram a se oferecer para ajudar no projeto só porque achavam legal, conta Flávio, que também é o diretor do curta-metragem.
Para viabilizar o projeto, o brasileiro pediu uma das câmeras emprestadas à fabricante. A Elphel estranhou, já que não havia desenhado seus aparelhos para o cinema, mas sim para projetos científicos (o Google usa câmeras Elphel nos carros do Street View e para escanear livros para o serviço Books).
Flávio colocou as mãos na câmera em abril com a condição de que documentasse suas experiências e devolvesse tudo em janeiro de 2013. A câmera não tinha tecla Rec, nem lente. Era uma caixa preta com entrada para um cabo que deve ser ligado a um computador, que controla tudo. É quase como gravar um filme analógico no digital, mas pior, porque a gente não vê o que está fazendo.
O diretor do curta adaptou uma lente para a câmera que, somada ao fato de estar sempre ligada a um computador, acabou moldando também o roteiro. Tive de criar um roteiro basicamente de cenas internas para não ter de ficar andando com esse monte de fio por aí.
O curta conta a história de um jovem chamado Nikolai, que volta para a casa dos pais em uma pequena vila onde a floresta adquire um brilho vermelho quando escurece. Lá, reencontra a mãe e a irmã, que aguardam o pai retornar do trabalho.
Escolhas. Flávio se tornou um entusiasta de software livre após montar uma rádio web na universidade, onde cursou jornalismo. Fez, então, documentários sobre maracatu e vídeos experimentais em desfiles de moda. Hoje, está prestes a receber um certificado em gestão de sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas. Para ele, todo seu currículo faz sentido. É como aquela história do Steve Jobs sobre os pontos que vão se ligando durante a vida.
Um dos pontos que levou Soares a optar pela câmera Elphel foi que, além do baixo custo quando comparada com outras câmeras profissionais, ela gravava em formato RAW, que preserva todas as informações e camadas das cenas captadas, o que dá grande liberdade para os processos de edição e pós-produção. Ele passou um ano e meio estudando, pela internet, como faria para tudo funcionar.
Muito do que eu sei veio do aprendizado que tive que buscar por necessidade. A gente perde tempo, mas vale a pena. O estudo rendeu um artigo técnico, o único disponível na rede, sobre como usar a câmera aberta para cinema digital.
Financiamento. Para sair do papel, foi decidido que o projeto seria bancado por mecenato colaborativo, o chamado crowdfunding. O Floresta Vermelha entrou para o site Catarse com o pedido de R$ 6.500 para ajudar a custear os gastos com o curta. O valor foi atingido na quinta-feira, com doações de 92 pessoas que, entre outras coisas, receberão convites para a festa de lançamento do curta no dia 30, em um espaço no bairro da Lapa, em São Paulo. Durante a exibição do filme, haverá também uma apresentação da banda responsável pela trilha sonora.
Pensamos em tentar o dinheiro através de edital, mas tinha certeza que (os avaliadores) não entenderiam o projeto. Por isso buscamos um sistema alternativo, diz Soares.
O projeto se ligou a uma organização criada na Europa chamada Apertus, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento do cinema livre no mundo. Flávio se aproximou do grupo e, graças ao Floresta Vermelha, chamou a atenção e foi eleito para o conselho executivo.
A Apertus se originou a partir da utilização das câmeras livres norte-americanas, mas se apressou em dar início ao desenvolvimento de uma própria, chamada Axiom, com resolução melhor, de 4k (4096 × 2160) o dobro do modelo mais recente da Elphel , e própria para o cinema.
O anúncio provocou ansiedade nos membros desse mercado, que já vislumbram que haverá investimento mais pesado no desenvolvimento aberto e colaborativo de plataformas (software e hardware) no futuro.
Essa revolução pode começar com a Axiom, escreveu o cineasta austríaco Tobis Deml, em no artigo Hollywood precisa de uma câmera de código aberto?. Se a Axiom obtiver sucesso em seu desenvolvimento, causará um impacto tão grande na indústria do cinema, de maneira que outros fabricantes seguirão seu exemplo para não correrem o risco de ficar para trás, diz Deml.
Uma câmera livre não significa que necessariamente qualquer um vai poder criar uma máquina na garagem de casa. Segundo Flávio, o processo é bem diferente, por exemplo, de uma placa Arduino, que permite gerenciar qualquer tipo de dispositivo, de uma impressora 3D a um sistema de irrigação.
Câmeras são mais complexas e ainda há partes delas, como alguns sensores, que são de tecnologia fechada. Mas o software que lê o sensor já é livre, explica Deml. Segundo Soares, a importância da documentação técnica da câmera ser aberta e disponível na internet é que, assim, outras pessoas podem adquirir aquele conhecimento específico e criar coisas ainda mais avançadas. Para ele, é assim que a indústria deve se desenvolver.
O legal do código aberto é que permite que outras pessoas façam e melhorem as coisas, e só dá para fazer porque as ferramentas estão aí. É só usar.
(Fonte: http://blogs.estadao.com.br/link/um-projeto-livre-para-o-cinema – SÃO PAULO Um projeto livre para o cinema/Por Murilo Roncolato
18 de novembro de 2012)