Gadda: revolucionário como Joyce
Carlo Emilio Gadda (Milão, 14 de novembro de 1893 – Milão, 21 de maio de 1973), poeta e escritor, espécie de James Joyce italiano.
Quando um jornalista do “Times” londrino indagou se ele era um Joyce italiano, Carlo Emilio Gadda sorriu com ironia: “Eu? Eu sou um humorista…” No dia 21 de maio de 1973, aos oitenta anos de idade, morria de pneumonia, em Milão, infinitamente mais do que um modesto humorista”, o mais profundo revolucionador do romance italiano contemporâneo, realmente tão importante em suas inovações para a literatura italiana quanto Joyce para a de língua inglesa com “Ulisses” em 1922.
Durante 27 anos, alternando seu trabalho de engenheiro industrial, Gadda cedeu aquele seu sutilíssimo “Quer Pasticciaccio Brutto de Via Merulana”, a obra-prima que desencadeara admiração e estupor igualmente violentos na Itália. Um grupo minoritário vislumbrou a audácia inédita de entremear cenas inteiras no saboroníssimo dialeto popular de Roma dentro de uma estrutura filosófica inquietante: a indagação sobre o significado maior do crime, do furto, da miséria, da solidão, do amor.
Comparável a um labirinto, o romance em quase quatrocentas páginas é um afresco da cidade, vital e humana, desde as mansões do tédio da alta burguesia até a longa batalha pelo pão diário nas vielas dos mercados, da prostituição e do delito. Moderado o ceticismo e a melancolia, sempre a nota viva do humorismo de Gadda.
Em Aquela Confusão Louca da Via Merulana, um romance extremamente bem-sucedido – O roubo das joias de uma condessa e o misterioso assassinato de uma bela e endinheirada mulher, na Roma do final dos anos 20, servem de ponto de partida numa aparente trama policialesca.
À trajetória, cujo contraponto narrativo é o delegado Francesco Ingravallo, superopõem-se uma ambiciosa reflexão filosófica e uma intrincada teia linguistica, em que a linguagem acadêmica se mistura a dialetos de várias regiões da Itália. No final, o que se vê é um retrato sem retoques da sociedade italiana dos primeiros anos de regime fascista.
Difícil de rotular – Para os acadêmicos, era a mistura de gêneros que confundia. “Quer Pasticciaccio” não se deixava rotular facilmente: começava como novela policial, o relato de um furto banal. Mas logo seguia num assassínio misterioso e numa rede de intrigas, suposições e análises psicológicas exclusivas do romance sério”: a defasagem entre uma quarentona solitária, rica e melancólica, e um jovem desempregado, venal e violento, disposto a traficar só sexo em vez de amor. Aos poucos era o retrato de Roma, clássica, barroca, moderna, que emergia sob o regime fascista.
A falsa “grandeza” do Estado se opunha a realidade das delações diárias, da censura sufocante e das incursões colonialistas na Etiópia. Uniformemente, a obra magistral de Gadda desagradava aos acadêmicos e aos extremistas da ideologia política. Para o crítico Contini era “uma macarronada… que mistura estilos e linguagens”.
Resíduos nos pratos – Gadda rompeu seu silêncio altivo para esclarecer. “Escrever macarronicamente é reivindicar e revolver os resíduos profundos nos pratos rasos, é imergir-se na comunidade viva das almas, tendo o autor oportunidade de expressar-se com traços alegres”. Para o marxistirante Alberto Moravia, a obra de Gadda era, em última análise, a de um palhaço, com a “neurose de não ver a realidade social, preferindo afastar-se em sua cômoda alienação burguesa”. Gadda sorria diante dos fatos sociais em vez de analisá-los à luz de “O Capital”. Só anos mais tarde, e mesmo assim num ensaio cômico sobre o poeta Foscolo (1778-1827), Gadda redarguiria que o escritor tem que encontrar sempre “a metafísica do real”.
Solitário, arisco, captara sua primeira impressão amarga da vida quando, durante a Primeira Guerra Mundial caíra prisioneiro dos alemães aos 24 anos de idade. Seu desgosto o levou a publicar, daí a três anos, seus primeiros contos, sempre de veia satírica, e no fundo traindo sua decepção e seu fascínio pelo bicho homem, imutavelmente cambiante e indiferente ao próximo. Em seguida, como engenheiro industrial, empreendeu viagens à França, à Alemanha, à Suécia. A mais longa o manteve vários anos na Argentina, onde por certo tempo pensou radicar-se, longe do Velho Mundo e suas guerras e nacionalismos estreitos. Do pampa argentino e de sua permanência por lá resultaria, talvez, seu livro mais perfeito, embora deixado inacabado: “La cognizione del dolor”.
Pastiche de “novela” seiscentista, mistura de neologismos arcairantes e de sermões híbridos, semi-espanhóis, semi-italianos, “La cognizione del dolore” é um dos mais fascinantes monólogos sobre os limites da comunicação entre mãe e filho e sobre as limitações da própria condição humana, com sua renúncia ao amor, sua infraduribilidade de um ser humano a outro, sua impotência diante da brutalidade do convívio humano e do anulamento final do pó e da morte.
Distância altiva – Fora de qualquer roda literária, sem frequentar círculos de promoção jornalística ou televisiva, Carlo Emilio Gadda guardou sempre uma distância altiva das disputas inúteis. Sua condenação cabal do fascismo – não bastasse o painel trágico-grotesco do “Quer Pasticciaccio” – ficou mais claramente documentada ainda em “Eros e Príapo”, em que, sob uma capa tênue de mitologia clássica, ele traçou hilariantes e argutas relações entre a frustração sexual e a Censura, entre o expansionismo totalitarista fascista e os rituais de saudação ao “Duce”, forma patética de substituir, externamente, uma aridez afetiva e uma visão burocrática e esquálida da convivência humana estereotipada e desindividualidada.
No Brasil, até hoje, Gadda é um mero nome, havendo editores que ao ouvi-lo pronunciado se indagam se não seria a designação de um promontório no golfo de Nápoles. Os editores portugueses, mais esclarecidos e mais célebres, arrebatam “direitos de tradução para a língua portuguesa” que impedem nova tradução além da oficial, liberta. Alega-se ainda a extrema dificuldade de traduzir Gadda, uma espécie de texto de Guimarães Rosa redigido em italiano. Para o autor de “L’adalgisa” esse impasse seria mais um “passiocciasccio”. Interessante por ser risível e desvelar mais uma vez a incomunicabilidade não só entre os seres humanos mas até entre uma cultura e outra.
(Fonte: http://www.caras.uol.com.br – 13 de março de 2009 – EDIÇÃO 802 – Citações)
(Fonte: Veja, 30 de maio de 1973 – Edição 247 – LITERATURA/ Por Leo Gilson Ribeiro – Pág; 88)
(Fonte: Veja, 1° de agosto de 1990 – ANO 23 – Nº 30 – Edição 1141 – Livros – Pág: 76)