Foi um controverso personagem histórico
Carlos Lamarca (Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1937 – Ipupiara, 17 de setembro de 1971), vulgo “João”, ex-capitão do Exército, e terrorista, um dos principais combatentes armados à ditadura civil-militar. Natural do Rio de Janeiro, onde nasceu em 27 de outubro de 1937, e tido como pessoa excessivamente nervosa e exímio atirador. No início, João na sucinta ficha fornecida pelo DEOPS paulista, em março de 1969, o oficial que dois meses antes desaparecera do quartel do 4.° Regimento de Infantaria em Quitaúna, levando 63 fuzis FAL, dez metralhadoras Ina e munição, era descrito como João. Do dia em que foi obrigado a cair na clandestinidade, quando foi descoberto seu plano de desviar armas do quartel para a subversão, ao desfecho melancólico na caatinga baiana, Carlos Lamarca foi porém enriquecido por inúmeros e contraditórios atributos, merecidos e imerecidos.
Na imprensa, a habilidade de atirador e uma série de operações espetaculosas (certa vez comandou um assalto simultâneo a dois bancos, numa rua movimentada de São Paulo, e parou o trânsito com rajadas de metralhadoras depois de atingir mortalmente um policial com tiro de pistola de mais de 30 metros) levaram o nome de Lamarca às manchetes e daí ao posto de principal líder do terrorismo no Brasil.
A eficiência de Lamarca e os serviços prestados por ele à subversão seriam importantes principalmente pelas suas aptidões militares, úteis no planejamento de assaltos e atentados, e por sua coragem física. A esses atributos, segundo o noticiário da imprensa, aliava uma mobilidade indispensável para um fora-da-lei: em maio de 1969 foi visto no Rio Grande do Sul, um mês depois dava-se como certa sua presença em Montevidéu. Em julho, no Rio de Janeiro comandava o maior assalto realizado por grupos subversivos no Brasil, levando um cofre de mais de 200 quilos que pertencera ao ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros: no cofre havia 2,4 milhões de dólares.
O cavaleiro tropical – Em agosto, Lamarca reaparecia em São Paulo. Em companhia de Carlos Marighella teria participado da tomada dos transmissores da Rádio Nacional para divulgar um manifesto subversivo. Na época, Joaquim Câmara Ferreira estaria tentando uma aproximação entre os dois chefes terroristas, Lamarca e Marighella, em termos de uma união nacional do terror. A hipótese pareceu confirmar-se um mês depois, com o sequestro do embaixador Charles B. Elbrick: os prisioneiros exigidos em troca da vida do embaixador constituíam uma verdadeira frente ampla das várias organizações terrorristas. E havia tempo ainda para se organizarem reuniões em petit comité, pomposamente intituladas congressos, onde os chefes de grupo baralhavam suas siglas, divergiam políticamente, discutiam sobre o caminho mais rápido para se chegar ao poder: guerrilha urbana ou terrorrismo?
Num desses congressos, em Teresópolis (Estado do Rio de Janeiro), ainda em setembro, Lamarca e mais sete, entre os 23 congressistas, definiram sua posição em favor da coluna guerrilheira. Foi criado inclusive um slogan: “À coluna nada se nega”. Lamarca era um dos defensores dessa primazia da guerrilha, menos por convicções políticas e mais “por temperamento”, como disse certa vez um oficial ligado ao combate à subversão. Conhecendo bem a sua formação, esse oficial acreditava que Carlos Lacerda devia sentir-se pouco à vontade assaltando bancos como um marginal comum. Extremamente vaidoso e sonhador, tudo indica que ele se via como um Alexandre Névski tropical, cavalgando por planícies imaginárias à frente de tropas inexistentes.
O mestre-escola A realidade, a incontornável cisão entre VPRs, ALNs, VARs, etc., e a eficiência cada vez maior dos órgãos de segurança negaram porém a Lamarca êxitos apreciáveis nas tentativas de incursionar por campinas e montanhas. Com a morte de Carlos Marighella, em novembro de 1969, só os grupos terroristas que mantinham contatos com Lamarca sofreram, segundo as autoridades, mais de quinhentas prisões. Sem meios de empreender algo além do que simples levantamentos topográficos de áreas para futuramente tentar implantar ali focos de guerrilha, o ex-capitão, já transformado ligeiramente por uma operação plástica feita no Rio de Janeiro, dedicou-se a uma tarefa mais apropriada a um mestre-escola: com uma letra miúda e desenhada, de ginasiano, deixou em vários aparelhos localizados pelos órgãos de segurança uma razoável literatura didático-subversiva, onde tratava principalmente de contornar dissensões internas e recomendar o óbvio, com frases como ”Nunca subestimar o inimigo” (encontrada numa carta a uma terrorista).
A tentativa, em meados de 1970, de estabelecer pelo menos uma base de treinamento para guerrilhas no Vale do Ribeira, em São Paulo, foi um salto no vazio entre a teoria e a prática. Um pequeno grupo terrorrista foi cercado durante semanas, sofreu baixas buscando a fuga, assassinou brutalmente umoficial da Polícia Militar, capturado como refém. Do Vale do Ribeira até o sertão da Bahia, a atuação de Lamarca tornou-se cada vez mais inexpressiva. Os grupos terrorristas misturaram novamente suas siglas, a VPR de Lamarca sumiu de circulação. Mas foi exatamente nesse período que o mito Carlos Lamarca, além das dúvidas antigas sobre sua capacidade política, começou a ganhar contornos ainda mais lendários.
Um visionário Depoimentos de terroristas que tiveram o discutível privilégio de conhecer pessoalmente o ex-capitão revelam que, se não conseguiu realizar-se como um Alexandre Névski, ele não reduzia, em sonhos megalomaníacos, suas pretensões. Celso Lungaretti, que foi do setor de inteligência da VPR e mais tarde repudiou o terrorismo, descreve-o como um homem totalmente desvinculado da realidade. Lamarca teria pensado inclusive em desafiar o delegado Sérgio Fleury, responsável pela queda de Marighella, para um duelo a tiros (Fleury declarou à imprensa que aceitava o desafio) que seria filmado e exibido no exterior.
Massafumi Yoshinaga, outro terrorrista arrependido, despiu Lamarca das roupagens de líder (“É um tipo temperamental e inculto, pouco mais que um bom atirador”). Embora evidentemente sem tanto conhecimento de causa e com menos ênfase, outros subversivos presos, principalmente os mais dotados intelectualmente, fizeram inúmeras restrições a Lamarca. Esse desprezo aparente pela figura do grande gatilho do terror podia até mesmo ser constatado em amenas mesas de bar no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde alguns remanescentes da esquerda festiva analisavam as diretrizes do movimento subversivo.
As contradições Na verdade, porém, a carreira subversiva de Carlos Lamarca parece ter pontos controvertidos dos que raiam ao absurdo. No seu início, o então capitão do Exército chegou a dividir seu tempo entre as reuniões clandestinas (ele pretendia desviar quatrocentos fuzis do quartel onde servia) e aulas de tiro ao alvo ministradas a jovens funcionárias de banco para que pudessem defender-se em caso de assaltos (que se tornavam cada vez mais frequentes). Rosto encavado e expressão compenetrada, Lamarca posou para inúmeras fotografias segurando gentilmente o braço de suas alunas, eventualmente futuras vítimas de algumas de suas ações terrorristas. Essa facilidade em dissimular não poderia ter sido empregada outras vezes?
Recentemente, as próprias autoridades de segurança, na Guanabara, divulgaram o teor de documentos descobertos num aparelho, nos quais Lamarca se defende de uma fantástica acusação que, segundo ele mesmo, vinha sendo feita no exterior por elementos ligados ao antigo Partido Comunista Brasileiro: a de que era um agente duplo, na verdade a serviço da CIA. Outros documentos mostram o antigo líder abatido, mas ainda coerente com os seus impulsos passionais a ponto de ter pedido demissão, “em caráter irrevogável”, da VPR. Lamarca estaria desgostoso porque fora rebaixado de função pela cúpula da organização. Como que se sentido culpado de alguma coisa, justifica-se por ter-se retirado do Vale do Ribeira.
E, embora tivesse abandonado os grandiloquentes e psicologicamente significativos apelidos de “César” e “Cid”, usados assim que galgou posição na intrincada hierarquia do terror, Carlos Lamarca ainda não perdera, segundo esses documentos um tom autoritário ao tratar com os companheiros. Assumindo a compostura de um juiz, ameaça submeter um deles, de quem discorda, a um exame de sanidade mental. A partir desses achados preciosos (nesse mesmo aparelho” parece ter sido desencadeada a primeira fase da operação que culminou com a localização de Lamarca na Bahia), os órgãos de segurança da Guanabara chegaram a admitir que o caso Lamarca já não seria apenas um problema político ou de segurança, mas de psiquiatria. De qualquer forma, a divulgação do que seriam os seus últimos pensamentos serviu para estimular as especulações só desfeitas com sua morte sobre algumas estranhas coincidências, como o aniquilamento de todo um grupo subversivo – o PCBR -, que teria ocorrido logo após ter entrado em contato com o grupo de Lamarca. Além do fato de que, dos grandes do terror, ele era o único a não ser localizado, mesmo sendo o mais procurado.
O fim, na Bahia – Qualquer conjetura sobre o futuro do terror, agora sem esse derradeiro e discutido líder, parece precipitada. Os próprios objetivos de Lamarca, ao estabelecer sua base de ação no interior baiano, ainda não haviam sido devidamente esclarecidos. Há indicações seguras, captadas desde março de 1971, que uma das organizações subversivas, o MR-8, estava deslocando seu eixo de ação do Rio de Janeiro e de São Paulo pra o nordeste. Pela extensão, condições geográficas extremamente rudes e localização, a região centro-oeste da Bahia seria a mais indicada.
Mas, ainda que a presença de Carlos Lamarca no sertão tenha sido determinada por razões estratégicas e não apenas por um ato isolado de desespero, alguns setores encarregados da segurança não acreditam que essa incursão pelo interior possa ser interpretada como uma ação de vulto e principalmente capaz de, finalmente, aglutinar os remanescentes das antigas organizações subversivas. Estes parecem mais interessados numa completa reformulação de suas técnicas, dando mais ênfase ao trabalho de doutrinação política do que propriamente a operações armadas.
À sombra de uma árvore, em Pintada no município baiano de Ipupiara, os dois homens cochilavam, exaustos pela caminhada. Era no meio da tarde, a hora em que o sol bate de chapa nas matas e caatingas do sertão. De repente, um deles acorda sobressalto e, num fôlego só, grita aos companheiros: Os homens estão chegando. Os homens, no caso, estavam poucos metros adiante, em posição de tiro um grupo de vinte policiais e militares que há dias procuravam a fatigada dupla. Começa o tiroteio de ambos os lados. O primeiro, José Campos Barreto, o Jesse, corre, mas tomba crivado de balas 20 metros além. O segundo, o terrorista Carlos Lamarca, permanece alguns segundos sentado, saca seu revólver 38, cano longo, mas cai atingido por cinco balas, três no coração.
Pela última vez Era a cena final de um terrorista vencido e o resultado de um cerco policial que mobilizou, durante semanas, masi de seiscentos homens. Na sua pista, infatigáveis, os grupos de caça, fazendo perguntas, vasculhando casas e fazendas.
Desde o dia 6 de agosto, quando localizaram um esconderijo de subversivos num prédio da Pituba, bairro elegante de Salvador, e forçaram seus ocupantes a desocupá-lo com bombas de gás lacrimogênio, a convicção das autoridades de que estavam perto de Lamarca reforçava-se a cada momento.
Um dos ocupantes do aparelho da Pituba teria fornecido algumas informações para a sua localização. O outro, uma loira identificada como Yara Iavelberg, que se teria suicidado depois de trancar-se no banheiro, deu aos policiais a certeza de que Lamarca estava na Bahia. Yara era conhecida como amante de Lamarca e as autoridades haviam inclusive interceptado uma carta onde ele afirmava que iria procurá-la “nem que fosse pela última vez”.
Uma expedição enviada a Brotas de Macaúbas no centro-oeste da Bahia, já havia localizado uma fazenda, espécie de “aparelho rural” que daria cobertura a Yara e Lamarca. Nesse local, dois terrorristas foram mortos em choque com a polícia.
Subitamente, no final da semana, do silencioso e adormecido sertão baiano as notícias começaram a surgir, cada vez mais precisas. De Oliveira dos Brejinhos mandavam dizer que dois homens armados em busca de comida estavam ameaçando sitiantes. No dia 12 de setembro, domingo, uma caravana de policiais dirigiu-se para Ibotirama, onde o médico local havia recebido um estranho pedido feito por um desconhecido bem vestido, “aparentando fina educação”, para atender um doente. Diante da recusa, o desconhecido irritou-se, indagou-lhe se não tinha filhos, se não era humano. Ao que tudo indica, tratava-se de Carlos Lamarca.
O cerco foi se fechando. Quinta-feira, os dois andarilhos foram vistos em Carnaúba Grande. Iam para Carnaubinha e estavam famintos. Depois surgiram em Terra Vermelha, a seguir Cana Brava. Finalmente, na sexta-feira, no fim de uma caçada que muitos na região compararam às da época do cangaço. Lamarca e seu auxiliar “Jesse” foram localizados. Pressionados por implacáveis perseguidores, haviam se embrenhado pela caatinga, procurando a fronteira do Piauí ou de Goiás. Lamarca ferido, antes de morrer, chegou a trocar breves palavras com um dos policiais. Confirmou que era Carlos Lamarca, disse que sua mulher estava em Cuba e que sabia da morte de Yara.
O fim do grande cerco a Carlos Lamarca dá razão aos reformuladores. Sábado à tarde em Salvador, enquanto garotos saíam à rua anunciando a edição extra de “A Tarde”, na sala de autópsia do Instituto Nina Ribeiro, o próprio secretário da Segurança da Bahia, coronel Joalbo de Figueiredo, distribuía aos jornalistas “uma relação de pessoas falecidas que se encontram neste Insituto: Iara Iavelberg, Luiz Antônio Santabarbara, Antoniel Campos Barreto, Carlos Lamarca e José Campos Barreto”.
(Fonte: Veja, 22 de setembro, 1971 - Edição 159 - DATAS – Pág; 23 a 26 e 65)
Carlos Lamarca faz ação armada, assaltando duas agências bancárias em São Paulo, em 9 de maio de 1969.
(Fonte: Zero Hora – ANO 52 – Nº 18.105 – 9 de maio de 2015 – HOJE NA HISTÓRIA – Pág: 40)
Em 17 de setembro de 1971 – O guerrilheiro Carlos Lamarca é morto por uma patrulha militar no interior da Bahia.
(Fonte: Zero Hora – ANO 51 – Nº 17.873 – 17 de setembro de 2014 – Hoje na História – Almanaque Gaúcho/ Por Ricardo Chaves – Pág: 56)