Chiang Kai-shek (Zhejiang, 31 de outubro de 1887 – Formosa, 5 de abril de 1975), estadista e líder militar chinês. Nascido na província de Zhejiang, vem de uma família de comerciantes. Em 1906 recebe treinamento na Academia Militar Nacional. No ano seguinte vai para Tóquio, no Japão, onde conhece Sun Yat-sen (1866-1925), líder revolucionário e fundador do Partido Nacionalista (Kuomintang), que se opõe à decadente dinastia Manchu chinesa.
Até o fim, o protocolo não se afastou nem um milímetro da ficção oficial.
Pois ao ser sepultado junto a um lago montanhoso a 40 quilômetros de Taipé, desde 1949 a “capital provisória” de sua China impossível, o corpo de Chiang Kai-shek, envolvido em lírios brancos e na vestimenta azul e negra de praxe, estará ganhando, onze dias após a sua morte, uma tumba também provisória. A definitiva, explicavam os comunicados oficiais, só virá quando a China continental for reconquistada e tornar-se possível, então, o sepultamento do generalíssimo na mãe-pátria.
A morte de Chiang no dia 5 de abril encerrou uma das mais extraordinárias aventuras políticas do século XX – e enquanto seu corpo embalsamado pregrenava de um monumento a outro de Taipé, velado por milhares de pessoas, havia a certeza de que a história moderna da China acabara de dar um passo capital.
Com o generalíssimo desaparecido aos 87 anos, a ideia das “duas Chinas” sofria seu pior golpe desde a admissão do regime de Pequim na ONU em 1971 – e, inevitavelmente, ficava removido o principal obstáculo para uma futura, e ainda difusa, união entre Formosa e o continente.
Para a presidência, ocupada desde 1927 por Chiang, subia Yen Chia-kan (1905-1993), um burocrata incolor de 70 anos. E todo o poder real se concentrava nas mãos do ambíguo, enigmático Chiang Ching-kuo, de 65 anos, o filho mais velho do generalíssimo e desde 1972 primeiro-ministro de Formosa.
É verdade que Chiang filho, falava com o mesmo fervor anticomunista do pai. Mas parece certo que os contatos secretos entre Taipé e Pequim tendem a se multiplicar lentamente – negociando-se, eventualemente, a transformação de Formosa em algo como uma província autônoma da China continental.
Amargura – Seria, este sim, o sepultamento definitivo de Chiang Kai-shek e seu credo – algo que, na verdade, começou a morrer 26 anos atrás, quando o generalíssimo de cinco estrelas, à frente de 2 milhões de soldados e civis, cruzou os 160 quilômetros de mar que separam a China da ilha de Formosa, para jamais pisar de novo no continente.
De fato, para Chiang esse último quarto de século foi uma amargurada, frustrante aposentadoria política – embora tenha forjado em Formosa o mais próspero país do Extremo Oriente depois do Japão e convencido boa parte do mundo, durante quase todo esse tempo, de que a China estava “provisoriamente” em Taipé, e não na “rebelde” Pequim.
Mas Chiang Kai-shek nunca teve mais que um superficial, apressado interesse por Formosa e seus fulminantes índices de crescimento do PNB. Batido pelos exércitos comunistas de Chu Teh e Mao Tsé-tung em 1949, foi se tornando claro, com o correr dos anos, que ele jamais poderia fazer o caminho de volta. Na realidade, sua silenciosa humilhação seria cada vez mais pesada, sobretudo depois de 1971.
Sua China era expulsa da ONU, em favor dos “bandidos” de Pequim. O presidente dos Estados Unidos, seu arquialiado, visitava trinfalmente o território inimigo. E o número de embaixadas estrangeiras em Taipé reduzia-se dramaticamente mês a mês até chegar às atuais 34, contra 107 abertas em Pequim.
Gelen e Borodin Nascido sem muita fortuna em 1887, na província sulista de Chekiang até seus grandes dias de poder ele guardaria um certo sotaque, implacável revelador de sua origem -, Chiang cresceu entre as calamidades do fim do império e, como jovem estudante no Japão, ligou-se ao movimento revolucionário do dr. Sun Yat-sen, o pai da República chinesa. De volta à China, após a República, ele iria se volatilizar em Xangai – desaparecendo no impenetrável universo das tong, as sociedades secretas da cidade.
Foi justamente através de um financista da Sociedade Verde, da qual fazia parte, que Chiang entrou em contato direto, em 1923, com o Kuomintang, o governo nacionalista numa guerra contra as múltiplas alianças de chefes militares e forças estrangeiras que dominavam o país.
Enviado para estudos em Moscou, Chiang voltou em 1924 para assumir o comando da escola de cadetes de Wampoa, tornar-se o principal chefe militar do Kuomintang e, assessorado por agitadores profissionais soviéticos como os lendários Gelen e Borodin, lançar-se numa série de combates vitoriosos.
A vitória final viria em 1927, com a tomada de Xangai pelas tropas do Kuomintang e seus aliados comunistas. Mas, nesse momento, Chiang já havia decidido quem eram seus inimigos fatais. Ele estava interessado na soberania da China, os comunistas na revolução social – e, aproveitando a própria tomada de Xangai, Chiang lançou-se ao extermínio do PC. Seguiram-se, então, as diversas e ineficazes campanhas de “erradicação de bandidos”. E em 1931, com a tomada do norte da China pelo Japão, começaram os desastres, sem retorno, de Chiang.
Sequestro – De fato, Chiang recusou-se inabalavelmente a combater os japoneses – achando insuportável a ideia de arriscar contra eles tropas destinadas à guerra com Mao. Nem mesmo quando foi sequestrado por um chefe militar rebelde e entregue aos comunistas, em 1936, o generalíssimo mudou de ideia solto por interferência de Moscou, assinou uma trégua pró-forma e tudo voltou a ser como antes. Mais ainda, perseverou nesse caminho mesmo quando os japoneses, nos anos seguintes, invadiam toda a China e o escorraçavam, debaixo de bomba, de capital em capital.
Chiang esperava que os Estados Unidos derrotassem o Japão para ele, guardando suas forças para o acerto de contas interno. Mas esse momento nunca chegaria. Terminara a guerra, as tropas do Kuomintang continuaram recuando, dessa vez contra os comunistas – e, em quatro anos, tudo estaria acabado. A partir de então, confinado em Formosa, a batalha contra Mao Tsé-tung passaria ao terreno diplomático e seria exercida na verdade não de Taipé, mas de Washington. Ao generalíssimo só restava a tarefa, bem menos grandiosa, de transformar Formosa num Estado verdadeiro.
Pergunta básica – Inegavelmente, no plano econômico, a tarefa foi cumprida. Um boom iniciado na década de 60 fizeram Formosa crescer 10% desde 1965. Seus 16 milhões de habitantes na época tinham uma renda familiar de 1 500 dólares anuais, o triplo do continente. Uma reforma agrária bem sucedida multiplicou de forma espetacular a produtividade no campo. A indústria produz de tudo, de rádios transistorizados a motocicletas, de camisas a jatos F-5E Northrop – e suas exportações são apenas 25% inferiores às do continente, com 800 milhões de habitantes.
Após a morte de Chiang, Formosa foi comandada por Chiang Chin-kuo (1910-1988). Formosa dirige-se cheia de indagações para o futuro. A personalidade do novo homem forte, na verdade, é ela própria uma interrogação. Nascido em 1910 da primeira esposa do generalíssimo, Chiang filho viveu entre os 15 e 27 anos na União Soviética onde chegou a denunciar seu pai, num artigo no Pravda, como inimigo do povo. Por suas convicções trotskistas, foi confinado por Stálin, durante algum tempo, numa mina de ouro na Sibéria e numa usina perdida nos Urais. E ao voltar para a China em 1937, casado com uma russa – Faina, sua esposa -, abjurou o comunismo e reconciliou-se com o pai.
Daí por diante ele sempre andou na sombra do generalíssimo sobrevivendo a percalços variados como um atentado contra a sua vida em 1970 ,em Nova York, ou os perenes problemas de um de seus quatro filhos com as autoridades policiais de Taipé. A pergunta básica sobre ele, entretanto, é como continuará os contatos com Pequim – impulsionados desde 1973, quando o regime comunista lançou uma oferta pública de negociações e convidou chineses de Formosa a visitarem o continente, com garantia de sigilo.
A longo prazo, o único caminho talvez seja a negociação pois não apenas Chiang Kai-shek desapareceu de cena. Dos quase 3 000 deputados do Kuomintang em 1948, menos de 1 300 ainda sobrevivem em Formosa. As velhas instituições desaparecem progressivamente. E, embora a maioria absoluta dos chineses de Formosa seja francamente anticomunista, ninguém pensa mais, numa reconquista do continente.
(Fonte: Veja, 16 de abril, 1975 - Edição 345 - INTERNACIONAL/CHINA - Pág; 32/33)