Clementina de Jesus (1901-1987), cantora de samba que brilhou durante 25 anos, neta de escravos

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Negra majestade

Clementina de Jesus da Silva (Valença, 7 de fevereiro de 1901 – Rio de Janeiro, 19 de julho de 1987), cantora de samba que brilhou durante 25 anos, neta de escravos beneficiados com a Lei do Vente Livre, curiosa dos cânticos religiosos e profanos, que ouvia à sua volta, Clementina acumulou na memória, ao longo da infância e da adolescência, um formidável arsenal de manifestações musicais afro-brasileiras. Sempre que se conta a história do samba, invoca-se uma série de seus antepassados de nomes exóticos, como o jongo e o caxambu, lembra-se que os primeiros bambas surgiram nos pagodes de uma certa Tia Ciata, no Rio de Janeiro, e que o primeiro disco do gênero foi gravado por Donga, em 1917. No dia no dia 19 de julho de 1987, com a morte da cantora Clementina de Jesus, aos 87 nos, vítima de derrame cerebral, o samba perdeu seu último gigante, que testemunhou todas essas passagens de sua história. Nascida em Valença, no Estado do Rio de Janeiro em 1901, mudou-se ainda menina para a capital, para o bairro de Oswaldo Cruz, berço da Portela, que viria a ser uma das mais populares escolas de samba do carnaval carioca, até os 62 anos, quando iniciou a carreira artística, esse arsenal lhe serviu apenas para animar rodas de samba, para ensaiar as pastoras do compositor Ataulfo Alves e para embalar sua faina diária como empregada doméstica. Depois, a transfromou numa artista de características únicas.

Clementina de Jesus da Silva, a quem as duas filhas – uma delas morta há treze anos -, sete netos, treze bisnetos e dois tataranetos chamavam de “Mãe Quelé”, era uma estrela, mas não no sentido habitual em que se emprega o termo. Levava o público de seus shows ao delírio, mas cantava com voz rouca e desafinada. Com sete LPs gravados, jamais conquistou as rádios ou chegou perto das paradas de sucesso. Era a rainha do samba, mas não se pode enquadrá-la em nenhuma das correntes do gênero – tudo o que cantava se transformava na música pura e primitiva que aprendeu na mocidade. Clementina era adorada não pelos padrões normais pelos quais se adora uma cantora, mas por representar um monumento vivo do tempo em que o samba não era o ritmo do Brasil nem sequer merecia a atenção da maioria dos ouvintes. Seu canto emocionava não pela qualidade, mas por transmitir a sensação de que se estava assistindo a uma vibrante aula de História.

ANEL E TURBANTE – Justamente por reunir essas características, Clementina não era uma cantora popular. Sua legião de fãs é composta, principalmente, por sambistas e compositores de outros gêneros, que viam nela uma espécie de sábia matriarca, e pelo meio intelectual, que a içou do anonimato em meados dos anos 60, quando, na esteira da bossa nova, se passou a valorizar o samba de morro. O responsável por sua descoberta foi o escritor e poeta Hermínio Bello de Carvalho, que, em 1962, a viu cantar numa mesa de bar no centro do Rio de Janeiro e ficou emocionado. Dois anos depois, levada por Carvalho, que desde então se tornou seu produtor e padrinho artístico. Clementina estreou profissionalmente numa apresentação ao lado do violonista Turibio Santos. Em 1964, participou do show Rosa de Ouro, ao lado de Paulinho da Viola e da cantora Aracy Cortes. O show foi um grande êxito e, desde então ,sempre vestida de branco, com um enorme anel nos dedos e turbante na cabeça. Clementina engrenou uma carreira em que foi muito festejada, mas que nunca lhe trouxe a correspondente recompensa financeira. Viúva do segundo marido desde 1981, nos últimos anos morava numa pequena casa do subúrbio carioca de Inhaúma, que lhe foi doada por um grupo de artistas, e sua única renda fixa era uma aposentadoria de dois salários mínimos. Com alguma frequência, era procurada para shows em bares e restaurantes, mas sempre em troca de cachês irrisórios. Lutando contra a dificuldade de locomoção, preferia recusá-los. Mesmo com esse final de vida melancólico, na memória do samba a majestade de Clementina permanecerá para sempre, intocada. O samba perde sua rainha Clementina de Jesus.

(Fonte: Veja, 29 de julho, 1987 – Edição n.° 986 – MEMÓRIA – Pág; 85)

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