Criou a primeira maconha medicinal brasileira
Aos 35 anos, Caio Abreu tinha a vida profissional ganha: passagem por grandes escritórios de advocacia, faturamento alto na própria empresa e dois filhos pequenos crescendo com conforto ao lado da mulher em São Paulo.
Ele resolveu, contudo, largar a carreira e se reinventar no mundo dos negócios com uma missão ousada: criar a primeira indústria brasileira de medicamentos à base de maconha.
Já possui autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar 20 kg de matéria-prima e desenvolver o primeiro “candidato a medicamento”, que ainda precisará passar por testes em humanos para uma eventual liberação comercial.
A empresa tenta avançar com cautela, já que o uso medicinal da maconha ainda dá seus primeiros passos legais no Brasil.
A empreitada de Abreu mira, naturalmente, o potencial econômico desse mercado, que já movimenta bilhões de dólares em países como EUA, Reino Unido, Israel, Canadá e França.
Só nos Estados Unidos as vendas legais de cannabis para fins médicos e recreativos somaram US$ 2,6 bilhões (R$ 8,4 bilhões) em 2014, segundo a revista britânica The Economist .
Primeiro alerta
“Aquela foi a semente que me despertou para o fato de que aquilo funcionava. Hoje acredito que poucos usos da cannabis são efetivamente recreativos (dada a variedade de usos medicinais)”, afirma ele, que prefere sempre citar a planta pelo nome científico.
Sueli sucumbiu ao câncer em dezembro de 2009, aos 58 anos. Desde então o filho conheceu sua atual mulher, teve dois filhos e continuou a tocar seu escritório de direito societário e mercado de capitais, que lhe rendeu uma vida confortável em um bairro nobre de São Paulo.
Mobilização
Em 2014, o debate sobre os efeitos medicinais da maconha ganhou peso no Brasil, na mídia e na comunidade médica.
O impulso foi o documentário Ilegal , que mostrava a realidade de pacientes que precisam da maconha medicinal e enfrentavam a lentidão da burocracia estatal para importar produtos e medicamentos derivados da planta.
Um dos personagens do filme era a menina Anny, então com cinco anos e portadora de um tipo incurável de epilepsia. A criança sofria de oito a dez convulsões por dia, e o único remédio que reduzia os ataques era o CBD, componente da maconha sem efeito psicoativo (ou seja, não “dá barato”).
O tema já estava no radar de Abreu, que aparece em uma das cenas mais tensas do filme, uma reunião em maio de 2014 na qual a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) adiou a reclassificação do CBD – o que acabou ocorrendo meses depois.
“Todo o processo das mães e do Ilegal fez o Brasil entender a cannabis e a epilepsia. Dada a gravidade dos problemas gerados por crises epilépticas, todo mundo apoiou a causa. Acho que não tinha ninguém contra no país, seria muito desumano esse sentimento. Acho que possibilitou o debate menos preconceituoso pela primeira vez”, diz ele.
Mudanças na regulação
A política em relação à cannabis medicinal no Brasil começou, portanto, a mudar aos solavancos – retrato da falta de consenso sobre como separar a maconha que pode curar e aliviar sofrimento daquela associada ao vício e ao tráfico.
Em dezembro de 2014, o Conselho Federal de Medicina autorizou médicos brasileiros a prescrever o CBD, mas a liberação foi limitada: somente neurologistas e psiquiatras receberam o aval, e apenas para crianças e adolescentes com casos graves de epilepsia.
No mês seguinte, a Anvisa passou a enquadrar o CBD como substância controlada, e não mais proibida – podendo, portanto, ser adquirida com receita médica e laudo de responsabilidade assinado por médico e paciente.
O CBD já é usado com sucesso nos EUA e em países da Europa contra epilepsias de difícil tratamento. Foi a primeira vez que a Anvisa reconheceu o efeito terapêutico de uma substância derivada da cannabis– desde então, já autorizou cerca de 1,5 mil pedidos de importação de produtos com o componente.
Em março deste ano, por determinação judicial, a agência liberou a prescrição e importação de medicamentos com demais derivados da maconha, incluindo o THC (tetrahidrocanabinol), que tem efeito psicoativo. Também autorizou a prescrição de flores de cannabis in natura para uso vaporizado.
A autorização, no entanto, só veio em resposta a uma decisão judicial, e a própria agência informou que irá recorrer da determinação.
Mas todas essas mudanças ainda têm efeitos restritos para os pacientes.
Como nenhum medicamento à base de cannabis possui registro no Brasil, as famílias dependem de importações burocráticas, caras (doses podem valer de R$ 1,5 mil a R$ 15 mil) e produtos sem qualidade farmacêutica – nos EUA, por exemplo, o CBD é classificado como suplemento alimentar e não tem produção controlada como no caso dos remédios.
Oportunidade
Foi aí que Abreu, hoje com 37 anos, viu uma oportunidade. Fechou o escritório de advocacia e saiu em busca de parceiros, consultores e colaboradores para a empreitada.
“Quando comecei a pensar em trabalhar com isso, vi que não existia uma empresa fazendo extrato (de componentes da maconha) de forma farmacêutica. Não que os óleos (importados) que estejam chegando não ajudem – ainda bem que há algo para crianças tomarem -, mas é importante saber o que está usando quando você vai se tratar de qualquer coisa”, afirma.
Um passo chave nesse processo foi atrair uma das principais empresas internacionais de maconha medicinal, a Canopy Growth Corp.
A Canopy é a maior firma licenciada para produção de cannabis do Canadá, país em que o consumo de maconha receitada por médicos é legal desde 2001.
Por meio da Bedrocan, subsidiária da Canopy especializada em produção para uso terapêutico, fornecerá as flores de cannabis para o desenvolvimento do primeiro remédio planejado pela empresa de Abreu, batizada Entourage Phytolab.
O primeiro objetivo da Entourage é desenvolver, testar e aprovar um extrato fitoterápico à base de maconha, com presença dos dois principais compostos: CBD (não psicotrópico) e THC (psicotrópico).
Efeito ‘entourage’
O nome da empresa vem de uma aposta no chamado “efeito entourage”, referência a associado, conjunto. Estudos indicam – mas não há consenso a respeito – que o efeito combinado de moléculas de CBD e THC pode ajudar a ação medicinal.
Com isso, a empresa quer utilizar a seu favor algo que a Anvisa e parte dos estudos tendem a ver como problema: o fato de ser difícil produzir um remédio “puro”, apenas com determinados componentes da maconha, como CBD ou THC.
“Nós acreditamos que o uso de extratos com alto CBD e baixo THC é uma estratégia mais acertada do que o CBD puro”, diz, citando estudos recentes, o diretor científico da Entourage, Fabrício Pamplona, farmacologista que estuda aplicações terapêuticas da cannabis há 15 anos.
Por meio da assessoria de imprensa, o Conselho Federal de Medicina informou que “geralmente estudos têm que ser analisados caso a caso”, levando em conta fatores como dimensão da pesquisa e qualidade da publicação científica.
Segundo o conselho, ao analisar cerca de 120 estudos para a decisão de 2014 que liberou, com limitações, a prescrição de CBD, o órgão disse que chegou a apenas cerca de dez estudos com “consistência” científica.
Próximos passos
A Entourage deverá receber as flores in natura de cannabis em outubro, e a extração dos compostos será feita usando tecnologia brasileira numa universidade pública de ponta – Abreu prefere ainda não mencionar o nome da instituição.
Espera realizar ensaios clínicos até meados de 2017 e começar a vender ao Brasil no mesmo ano.
O primeiro extrato deverá ter várias formas de apresentação, como uma específica para crianças e comprimidos para adultos. Um segundo produto deverá ser um extrato com maior concentração de THC.
Em um segundo momento, a empresa também espera ter autorização para produzir a cannabis no Brasil.
Um desafio chave no processo será o diálogo com a classe médica.
“A proposta é construir um diálogo dentro dos padrões que médicos já trabalham com quaisquer medicamentos: doses, efeitos colaterais, demonstrar todas informações técnicas para que possam trabalhar”, afirma Abreu.
“Médicos não têm preconceito, o que importa é a pesquisa estruturada, até para poderem entender porque um remédio pode ir não ir bem. Médicos que tratam dor, por exemplo, têm limitação no arsenal (de tratamentos disponíveis), e cannabis é uma alternativa. Muitos médicos não veem a hora de poder prescrever”, diz, confiante, o empresário.
(Fonte: http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/09 – BEM ESTAR / Thiago Guimarães Da BBC – 28/09/2016)
(Fonte: https://noticias.terra.com.br/brasil – NOTICIAS – BRASIL – 28 SET 2016) BBC BRASIL.com – Todos os direitos reservados.