Beate Uhse, a mulher por trás da primeira sex shop do mundo
Nascida cem anos atrás, a alemã mudou a sociedade ao abrir uma companhia pioneira de “higiene conjugal”. Apesar de quebrar numerosos tabus e ser uma mulher emancipada para a época, fica a questão: Uhse foi uma feminista?
Durante décadas, a mera menção do nome Beate Uhse fazia corar os alemães. Ela foi a mulher que tirou o sexo – ou, mais especificamente, os acessórios relacionados a ele – das gavetas do quarto de dormir e colocou-o nas vitrines. Isso, numa época em que ninguém falava abertamente de sexualidade, sobretudo de seus aspectos prazerosos.
Beate Köstlin nasceu em 25 de outubro de 1919 em Wargenau, Prússia Oriental (atualmente Rússia). Criada com valores liberais, ela presenciava desde pequena como os animais se reproduziam na fazenda do pai. Sua mãe, uma das primeiras médicas da Alemanha, era direta com ela em questões sexuais e a esclareceu sobre contracepção.
Logo também aprendeu que meninas podiam ser tão valiosas e talentosas quanto garotos. Depois de tirar licença de piloto em Berlim, ao completar 18 anos, ela passou a competir em voos acrobáticos. Em 1939 casou-se com seu instrutor, Hans-Jürgen Uhse, com quem teve um filho cinco anos mais tarde.
A morte do marido no ano seguinte, num acidente aéreo, não impediu Beate Uhse de voar. Em 1944 fora promovida a capitã da Luftwaffe (Força Aérea alemã), mas nunca discutiu seu envolvimento na Segunda Guerra Mundial, depois do fim do conflito. Por outro lado, como atuara na Força Aérea do Terceiro Reich, depois da guerra ficou proibida de voar.
Tendo se mudado com o filho para Flensburg, no norte da Alemanha, começou a vender produtos a domicílio para se manter. Assim ficou conhecendo donas de casa que lhe revelavam seu medo de ficar grávidas nos implacáveis primeiros anos do pós-guerra.
Lembrando-se dos ensinamentos da mãe, ela preparou uma brochura explicando o método contraceptivo rítmico Knaus-Ogino, a fim de ajudar as mulheres a identificarem seus dias férteis e inférteis. “Não era seguro, mas melhor do que nada”, recordaria mais tarde.
Uhse passou a distribuir o guia, chamado Schrift X, através de sua companhia de vendas pelo correio. As 32 mil cópias vendidas em 1947 garantiram o capital inicial para ela estabelecer o negócio que se transformaria num império.
Em 1951, batizou sua companhia Versandhaus Beate Uhse, e passou a vender preservativos e livros sobre “higiene conjugal” – como então se denominava a vida sexual dos casais.
A abordagem personalizada – ao dar seu próprio nome à firma e às publicações e se dirigir diretamente aos clientes na descrição dos produtos – contribuiu para o sucesso comercial. O catálogo continha itens de que todo mundo talvez precisasse, mas que não ousava mencionar.
A firma cresceu rapidamente. Dez anos mais tarde já contava 200 empregados e abria a primeira sex shop do mundo em Flensburg, descrita na época como “loja de especialidades para higiene conjugal”. Isso não impediu que a polícia fosse chamada para agir contra um local que servia à “exacerbação e satisfação antinatural dos estímulos sexuais, indo de encontro à moral e os bons costumes”.
Até 1992, Beate Uhse foi processada mais de 2 mil vezes, além de ser socialmente marginalizada devido a suas atividades. A Associação do Comércio Livreiro Alemão, por exemplo, recusou-se a incluía-la como editora, e foi-lhe interditado o acesso ao clube de tênis local. Em resposta, ela mandou construir sua própria quadra.
Na década de 70, as leis morais haviam se relaxado significativamente na Alemanha, permitindo à empresa se concentrar no prazer sexual, em vez da higiene conjugal. Além de preservativos, pomadas e revistas, a lista de artigos foi enriquecida com diversos brinquedos sexuais, lingerie e excitadores.
Quando a pornografia foi legalizada no país, em 1975, Beate Uhse também passou a vender fitas de videocassete e a distribuir filmes. Feministas a criticaram por promover produções que transformavam as mulheres em objetos sexuais.
A empresária se casara novamente em 1949, adotando o sobrenome do marido, o comerciante Ernst-Walter Rotermund, mas não mudou sua razão social para os negócios. A empresa passou por uma divisão, devido a disputas entre os filhos de Uhse, e estabeleceu-se uma segunda firma de comércio erótico à distância, a Orion Versand.
Consta que Uhse sofreu muito com a divisão da companhia e a disputa filial. Seu segundo casamento tampouco foi perfeito: depois de 20 anos de união, ela se divorciou e começou um relacionamento com um americano 25 anos mais jovem.
Perto do fim da vida de sua criadora, a cadeia alemã de artigos eróticos teve que lutar pela sobrevivência, mas Uhse finalmente recebeu reconhecimento por seu trabalho pioneiro. Em 1989 recebeu a Cruz Federal de Honra ao Mérito da Alemanha; e, ao completar 80 anos, após décadas como persona non grata em sua própria cidade, foi convidada a assinar o Livro de Ouro de Flensburg.
Beate Uhse terá sido uma pioneira da emancipação feminina, ou tudo não passava de negócios? Pessoalmente, não há dúvida que ela foi uma mulher emancipada, marcando seu espaço em setores de dominação masculina como a pilotagem e a fundação de empresas. Sem dúvida ela contribuiu para popularizar temas tabu, e não temia ameaças, ações judiciais nem exclusão social.
No entanto, a atitude de sua companhia quanto à objetificação feminina pela pornografia mostra que “ela não se importava muito com a emancipação das mulheres”, afirmou sua biógrafa Katrin Rönicke, em entrevista à rádio Deutschlandfunk. Esta a define, antes, como uma “influenciadora” precoce, alguém que vendia produtos comercializando a própria personalidade.
Beate Uhse morreu em 2001, aos 81 anos de idade, em consequência de uma pneumonia.
(Fonte: https://www.dw.com/pt-br – Deutsche Welle – NOTÍCIAS / ALEMANHA / SOCIEDADE / Autoria Nadine Wojcik – 25.10.2019)