Egon Schiele: erotismo, agressividade e pobreza
A repulsa e a atração de Schiele ao erotismo e à morte
Egon Schiele (Tulln an der Donau, 12 de junho de 1890 – Viena, 31 de outubro de 1918), erotomaníaco e egocêntrico atraído e repelido pela força mágica da morte, nome de vanguarda nas artes plásticas, com toda a ênfase do expressionismo a insolência de um austríaco meio desconhecido, pintor são sexual e controverso, arrojado e boêmio, é uma figura de destaque do expressionismo alemão.
O desenhista enfrentara a morte desde a infância. Schiele, quando era muito jovem, viu morrer seu pai e uma irmã, expressara em diversos documentos escritos, poesias e cartas, a atração que sentia pelo velho e pelo mórbido. Schiele disse uma vez que, por ser humano, amava “o amor e a morte”.
No entanto, também estava obviamente obscecado pelo corpo feminino e, com seus desenhos eróticos, provocava a sociedade de sua época. As figuras elegantes de Schiele contrastavam-se com as corpulentas formas pintadas por alguns artistas de sua época. Schiele foi acusado de ter “divulgado desenhos imorais”, depois que algumas crianças viram os nus pintados por ele em seu ateliê, o que fez com que passasse três dias na prisão.
A indignação da “boa sociedade” da época manifestou-se no dia em que o juiz queimou em público um nu de Schiele para se unir ao protesto que já estava sendo feito pelo famoso artista Gustav Klimt.
Os seus desenhos expressam o erotismo através de figuras grotescas e linhas agressivas: prostitutas e trabalhadoras da classe baixa eram os seus modelos preferidos e causaram polêmica na sociedade vienense de início do século 20. Schiele era protagonista da transição entre o modernismo e o expressionismo, pintou muitos auto-retratos nos quais o corpo ossudo quase sempre parece expressar uma dor existencial.
Os nus de Schiele, que se destacam pelo traço de suas linhas, são ser às vezes eroticamente drásticos e expressam o sofrimento, deixando entrever muitas vezes uma melancolia subjacente.
Pintou para atacar a convenção de que no corpo humano a cabeça fica acima do sexo. Como isso é questão de perspectiva, ele tinha recursos de sobra para obrigar o espectador a encarar o outro ponto de vista, grudando-lhe os olhos com traços e cores no foco de suas obsessões sexuais. Para chegar às paisagens que pintou como adulto, se percorre o caminho de sua formação, quando pintava auto-retratos masturbando-se diante de espelhos, despia Gertrude, sua irmã caçula, recrutava para o estúdio meninas de rua entre os esfomeados de Viena, virava empregadas domésticas pelo avesso e pegava como modelos as esgazeadas pacientes do ginecologista Erwin von Graff. Tudo isso numa época em que, no Brasil, ainda se espiava tornozelo de mulher em ponto de bonde.
Por essas e outras, a Enciclopédia Britannica o manteve na clandestinidade muito tempo depois de ter conferido um verbete a Oskar Kokoschka (1886-1980), seu parceiro na decolagem do movimento expressionista na Áustria. E o crítico Kenneth Clark (1903-1983) escreveu em 1969 um tratado completo sobre a história do nu nas artes plásticas sem gastar uma linha com Schiele, uma indiscutível autoridade na matéria. Talvez por ser o nu, segundo Clark, uma representação do “corpo equilibrado, desabrochado e seguro de si”. Schiele pintava outra coisa. Sua especialidade era a nudez do ser humano. E nisso foi mais preciso do que qualquer fotografia, como demonstram seus auto-retratos.
Mercado entalado – Egon Schiele teve vida curta e trágica. Sua carreira inteira não cobre uma década. Nela, produziu 300 telas e 3 000 desenhos num mercado em que esteve a maior parte do tempo entalado. Morreu aos 28 anos de gripe espanhola, depois de passar incólume como soldado pela I Guerra Mundial, servindo na retaguarda em repartições burocráticas do Exército imperial. Era filho de um chefe de estação que contaminou a família com sífilis, contraída numa visita a um bordel de Trieste durante a lua-de-mel. Quatro dos sete filhos do ferroviário Adolf Eugen morreram na infância. Depois de enlouquecê-lo e desemprega-lo, a doença acabou com ele antes que o resto passasse da adolescência.
Criou-se numa família de classe média que se pendurava precariamente nas bordas da pobreza, numa sociedade rachada por abismos de renda. A Áustria de seu tempo estava rachada entre o fim de festa da belle Époque e a dissolução do Império Austro-Húngaro. Viena era ao mesmo tempo a brilhante corte de Sigmund Freud, Gustav Klimt, Arnold Schoenberg, Ludwig Wittgenstein e o território de menores abandonados, desempregados, revolucionários, funcionários corruptos e desgoverno.
Sob a esclerose de Francisco José, cada vez mais gagá, o império caía aos pedaços. A histeria era a doença da moda. Para os literatos, o suicídio era ponto de exclamação. No ar vienense, o escritor Stefan Zweig farejou uma “perigosa infecção sexual”. E o novelista Robert Musil decretou que, na “cidade dos sonhos”, ninguém “saía às ruas como um todo”. Egon Schiele cruzou esse terreno escorregadio por uma trajetória pessoal. Estudante, pintava nua a irmã. Casado, com carreira feita, tirou a roupa e provavelmente algo mais de sua cunhada Adele. Quatro dias antes de morrer, desenhou a agonia de sua mulher. Foi preso em 1912 por corrupção de menores e condenado por obscenidade.
Entrou com aluno precoce para a Academia de Belas Artes, mas largou o curso no meio por incompatibilidade com os professores. Tinha arranjado uma vaga no círculo oficial de artistas consagrados quando a umidade do estúdio o matou, durante a epidemia de gripe espanhola, que fez mais baixas do que as trincheiras de 1918. Tal era sua capacidade de encenar autonomamente a própria tragédia que uma catástrofe coletiva como a I Guerra Mundial passa por sua biografia de viés. Como soldado, serviu em almoxarifados e retratou prisioneiros russos num campo de confinamento perto de Viena.
Procurem-se os sinais dessa existência escabrosa nas fotografias da época. Em seus melhores retratos, feitos pelo fotógrafo Anton Josef Trcka (1893-1940), lembra o ator James Dean. No resto, encarna um homem quase comum, quase sempre de paletó e gravata, enforcado em colarinho alto, metido em cenários estritamente domésticos. A seu lado, está às vezes a mulher, cuja intimidade ele também escancarou em desenhos eróticos. Entre marido, cachorro e o sobrinho, com roupa fechada até o pescoço, Edith é quase irreconhecível.
Para encontrar flagrantes sinceros e reveladores de sua existência, portanto, deve-se largar as fotografias e percorrer a interminável série de autorretratos, em que nu, torturado e com o sexo em primeiro plano ou a boca desdentada ele documentou a realidade. São mais plausíveis do que qualquer fotografia. Ele mesmo disse por quê: “Certamente, eu fiz pinturas que são horríveis, não nego isso, mas será que as pessoas acreditam que eu gosto de fazer as coisas desse modo para horrorizar a burguesia? Não. Isso nunca foi o caso. Mas o desejo tem seus fantasmas. Eu não pintei esses fantasmas por prazer. Pintei porque essa era a minha obrigação”.
O talento de Schiele cedo se notou. Contra a vontade da mãe e do tio, candidatou-se e conseguiu entrar na Academia de Viena aos 17 anos, logo na primeira tentativa. Um ano depois, em 1908, já participava numa exposição pública, de tema paisagístico.
No entanto, à medida que atingia uma idade mais madura, os seus temas foram-se tornando menos convencionais e a sua técnica mais ligada ao desenho e à aguarela. Dois anos após ter entrado na academia, abandonou-a para criar o Grupo de Arte Nova (Neukunstgruppe). A arte mais tradicional não lhe interessava e, em Dezembro do mesmo ano, o grupo organizou a sua primeira exposição, onde os corpos distorcidos de Schiele já estavam bem presentes.
Nos anos seguintes, o pintor austríaco desenvolveu a sua linha original. A pobreza e a piedade ligam-se nos seus desenhos de linhas abruptas e formas intensas que acentuam o carácter erótico das personagens. A sexualidade e a homossexualidade estão sempre presentes e funcionam muitas vezes como uma forma de oposição à Igreja. Vemos mulheres nuas a beijarem-se em vários trabalhos e há um frade que acaricia uma freira.
As cores pálidas da decadência juntam-se aos tons vermelhos das zonas mais sensíveis do corpo. Fascinado pela devastação do sofrimento, Schiele escolhia como modelos mulheres magras de tipo andrógino e de classe baixa. Muitas delas eram prostitutas. O pintor foca os órgãos sexuais das suas personagens, quer pela posição do corpo, quer pelas cores utilizadas, em quadros despidos de quase todos os elementos decorativos e na ausência de qualquer pano de fundo.
Também os seus auto-retratos expressam a forma como encarava a realidade. De olhos cavados, testa alta e com um corpo esquelético, Schiele mostra-se repulsivo para a posterioridade, quando aos seus contemporâneos se mostrava atraente e de aspecto elegante.
Após ter fundado o seu grupo de arte, Schiele expôs em Zurique, Praga, Dresden, Budapeste, Colónia e Paris. Apesar das críticas vorazes dos europeus mais púdicos, o seu trabalho viajou além fronteiras devido à sua força de expressão e agressividade. Schiele faz-nos viajar entre a promiscuidade dos bairros mais pobres, obrigando-nos a observar (e aos seus contemporâneos do início do século XX) o que ninguém quer ver. Não foi por acaso que este pintor foi o protegido de Gustav Klimt.
Schiele quer chocar? Quer chamar a atenção para problemas sociais? É obcecado por sexo? Muito provavelmente, um pouco dos três. Pintou a sua primeira companheira e musa, Valeria, a sua esposa, Edith, e chegou até a pintar a sua irmã mais nova nua: de cabeleira ruiva, deitada e com um olhar provocador. A intimidade entre o pintor e os seus modelos é uma das características visíveis nos desenhos.
Infelizmente, a sua carreira foi curta. Schiele acabaria por falecer durante a I Guerra Mundial, em outubro de 1918, com apenas 28 anos de idade, vítima de gripe espanhola. Os seus últimos desenhos foram da esposa, que tinha morrido três dias antes.
(Fonte: http://obviousmag.org/archives/2011/11 – publicado em artes e ideias/ por Diana Guerra)
(Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultnot/2004/03/04 – ÚLTIMAS NOTÍCIAS / por Cristina Casals Viena (EFE) – 4 mar 2004)
(Fonte: Revista Veja, 12 de novembro de 1997 – ANO 30 – Nº 45 – Edição 1521 – Arte / Por Marcos Sá Corrêa – Pág: 138/141)