A perfeita alquimista
A primeira artista brasileira a morrer por ingerir cocaína
Elis Regina: acima de tudo afinada, evitou repetir os mesmos recursos e se tornou insuperável em seu estilo
Elis Regina (Porto Alegre, 17 de março de 1945 São Paulo, 19 de janeiro de 1982), a grande cantora e intérprete (Elis Regina Carvalho da Costa), misturou técnica e emoção, resistiu às fórmulas fáceis e se tornou a maior cantora do Brasil
A cantora Elis Regina por causa da gargalhada escancarada e da grande vibração, o poeta Vinícius de Morais apelidou Elis de “Pimentinha”. Outro apelido da cantora era “Baixinha”, por causa do seu 1 metro e 54 centímetros de altura.
Em dezoito anos de carreira, Elis Regina percorreu com sucesso o destino dos artistas que jamais se contentam com o brilho do próprio ofício. A melhor cantora da música brasileira – ou, pelo menos, a dona da mais perfeita alquimia entre técnica e emoção vestia a fama como se fosse um daqueles vestidos caros, que, por belos, devem ser sempre trocados. A cada vitória ela saía, inquieta, em busca de uma nova parada: “Sempre vou viver como camicase. É isso que me faz ficar de pé”, confessava.
E foram muitos os voos vitoriosos dessa estrela desde que ela chegou ao Rio de Janeiro, em 1963, com 18 anos e 36 000 cruzeiros na mala. Aquela pequena gaúcha de 1,53 m (“Meu problema são 10 centímetros a mais; então estaria tudo resolvido”) desceu nervosa numa música popular enriquecida pela melodia da bossa nova e empobrecida pela escassez de intérpretes que levava ao reinado de Nara Leão, desafinada, porém levemente soturna, como se queria.
Agitada, chamaram-na “Pimentinha”. Movendo os braços para cima e para baixo, foi ridicularizada pelo cronista Sérgio Porto, que dizia não saber se ela era “uma cantora que nada ou uma nadadora que canta”. Havia nela, porém, uma pessoa enérgica, inquieta e, acima de tudo, uma cantora afinada. Não conseguiu acorar-se num gênero que lhe garantisse o sucesso comercial, como sucedeu a Maria Bethânia no modelo “amor inesquecível”. Muito menos agarrou-se à repetição de adoráveis recursos, como faz Roberto Carlos. Faltou-lhe a alegria contagiante de Gal Costa e o pique de Rita Lee. Mas tinha algo que faltava a todos e, por isso, nas próximas décadas, quando se procurar a voz desta época, ela estará num disco de Elis.
CORTEJADA PELA ESQUERDA – Poucos são os cantores brasileiros que se fizeram acompanhar por tantos compositores novos. Elis foi a primeira a gravar o desconhecido baiano Gilberto Gil e o mineiro Milton Nascimento. Também descobrira João Bosco, Aldir Blanc e Belchior. Tinha tudo para dar certo, e deu, naquilo que sabia fazer muito bem: cantar. Surgiu sorridente, com seus dentes pequenos e o cabelo curto, e assim poderia ter ficado por anos e anos, como eterna parceria de Jair Rodrigues. Mas recuou em busca de maior perfeição técnica, roçou o perigo das interpretações frias e, em 1975, com o show “Falso Brilhante” conseguiu combinar a cantora emocionada de antes com a técnica conquistada, firmando-se num estilo em que se tornou insuperável.
Mas, se o camicase voou bem no ofício, também afundou em ressentimentos e inimizades na vida. Como, numa de suas distorções, o meio cultural brasileiro exige do artista não apenas a arte mas uma espécie de atestado de idoneidade política – de direita para o governo e de esquerda para a oposição -, Elis morreu filiada ao Partido dos Trabalhadores, depois de um percurso sinuoso e agressivamente patrulhado. Em 1969, ela cantou na Olimpíada do Exército e em 1972 nas cerimônias pomposas do Sesquicentenário da Independência. Por isso, foi colocada no “cemitério dos mortos-vivos” que o cartunista Henfil – gerenciava na ocasião. Ela partilhava esse campo-santo com Marília Pêra, Roberto Carlos, Tarcísio Meira, Glória Menezes e Pelé. Em 1978, cortejada pela esquerda, fazia campanha para o professor Fernando Henrique Cardoso, candidato do MDB ao Senado por São Paulo. Mas, aos amigos, confessava que preferia o veterano Franco Montoro.
A participação de Elis em manifestações oposicionistas reconciliou-a com a esquerda e, com o tempo, as mesmas patrulhas que a apedrejaram passaram a afagála, tudo num esforço inútil quer do ponto de vista estético, quer no aspecto político. É improvável que ela tenha trazido votos a candidatos da oposição, assim como é certo que não foi pela sua participação em festas do regime que a ditadura viveu tanto. Esteticamente, ela, que lançava novas músicas e novos nomes, pouco acrescentou à sua biografia cantando músicas simpáticas à esquerda, pelo simples motivo de que Barbra Streisand e Joan Baez nã são a mesma pessoa.
A irriquieta personalidade da “Pimentinha” levava as pessoas a querer afinar, sem sucesso, a sua conduta. E, a cada “desafino” de Elis, brotavam sarcasmos. O maledicente compositor Carlos Imperial, ao saber que ela se casaria com o produtor Ronaldo Bôscoli, comentou: “Bem feito para os dois”. Mas isso era pouco. A cantora Maysa garantia ter a prova de que faltava caráter a Elis: ela a teria induzido a beber numa noite, para derrubar sua apresentação num palco que ocuparia em seguida. A acusação seria indiscutível se viesse de um semi-abstêmio como Roberto Carlos. Maysa, porém, dificilmente precisaria ser induzida a mais um copo.
AGUERRIDA E AGRESSIVA – “Elis vivia sempre com a corda esticada, a mil por hora, e mudava de opinião em fração de segundos”, observou o compositor Edu Lobo. O psicólogo Roberto Freire, a quem no sucesso do show Falso Brilhante ela atribuiu as emoções que distribuía do palco, tornou-se meses depois, um mau-caráter aproveitador. Roberto Carlos, de quem ela era amiga, já fora infantil e fugaz. E seu segundo marido, o compositor César Camargo Mariano, com quem vivera feliz no alto da serra da Cantareira por nove anos e dois filhos, virou, com o fim do casamento, “um explorador”. Como cantora, podia influenciar pessoas. Como pessoa, não conseguia fazer muitos amigos. Pudera. Teve um rápido romance em 1981 com o cantor Fábio Júnior e, ao encerrá-lo, fulminou o ex-namorado: “Ele foi como um sorvete, gostoso e rápido, mas brigamos quando eu disse que ele estava com saudade do plim-plim da Globo”. Aguerrida antes e agressiva depois, Elis sempre suportou mal o presente. Assim como foi capaz de voar para Nova York em busca do “sorvete” e de moê-lo depois, sustentava, enquanto o romance durou, que vivia um grande amor. Mesmo no palco, passava por explosões capazes de fazer com que o produtor Roberto de Oliveira dissesse, em tom de brincadeira, que “ela tem tudo para ser a Judy Garland brasileira, mas não bebe”.
Em 1977, antes de entrar num palco onde pouco depois estaria sua grande rival Maria Bethânia, ela teve uma crise de choro e recusou-se a cantar. Temia a audiência, mas, ao dominála, saiu coberta de aplausos e chegou feliz ao camarim, onde, pouco depois, começou a quebrar tudo. Por quê? Ouvira os aplausos dados a Bethânia e julgara-se batida. “Quem canta melhor? Eu ou a Bethânia”, perguntava com alguma insistência, sem segurança suficiente para acreditar na sinceridade de quem lhe garantia que era ela.
SEVERO APRENDIZADO – Era a melhor porque poucas cantoras tinham o seu espectro vocal. Rita Lee admite que não tem a metade da extensão de Elis. Bethânia sabe que lhe faltam os agudos. Gal, com extensão e agudos, tem graves pouco educados. Elis Regina, que no início da carreira esbanjava tanto agudos quanto fricotes, foi buscar pelo exercício os graves que lhe faltavam e, oa final de um severo aprendizado, era capaz de acompanhar as difíceis construções harmônicas de Milton Nascimento que já machucaram tantos intérpretes.
Assim como não há quem lhe tire os méritos de grande cantora e intérprete, nenhuma briga poderia tirar-lhe a conduta profissional impecável com músicos e colegas. Não apenas protegia valores jovens como, também, defendia os interesses de quem trabalhava ao seu lado. Em 1980, quando fazia no Canecão o show “Saudades do Brasil”, soube que o empresário Mário Priolli negara um aumento aos bailarinos. “Ou aumenta a moçada ou eu paro como show”, disse a Priolli recebendo de volta o aumento. Doou dinheiro para entidade de defesa do direito autoral, e, em 1981, quando um grupo de cantores foi a Brasília pedir ao governo que liberasse o disco da taxação dos supérfluos, fulminou a iniciativa: “Isso é defender as gravadoras. Elas é que têm de se preocupar com essa questão e não os artistas, de quem já tiram sua riqueza”.
Depois do rompimento com o compositor Camargo Mariano, Elis recompôs sua vida sentimental com o advogado Samuel Mac Dowell Figueiredo. Trocou a casa ecológica da serra da Cantareira, onde fazia longas análises dos confortos da vida silvestre, por um apartamento no centro dos espigões paulistas. Deixou o espiritismo que a levava a psicografar mensagens de um avô índio, perdeu o interesse pela parapsicologia e concentrou-se nas virtudes do vegetarianismo – ostensivamente, só bebia guaraná em pó. Ao lado de tanta excentricidade, porém, estava uma vocação caseira. Metódica, acompanhava atentamente a educação dos filhos.
“Eu conheci o sucesso sem estar preparada para enfrentar a vida”, reconhecia Elis numa daquelas frases que soam proféticas depois que se morre. No seu caso, porém, esse despreparo aparente não se refletiu quando ela chegou morta ao Hospital, mas sobretudo nos dias em que, vivíssima, era aplaudida em seus shows. A razão dessa angústia poderia estar na origem humilde, mas nem todos os artistas nascidos humildes são ostensivamente angustiados no sucesso: a imagem serena de Roberto Carlos prova isso à exaustão. A melhor explicação, e a única capaz de desembocar num copo onde se misturam álcool e cocaína, está numa competitividade exacerbada. Compulsão esta germinada numa menina que aos 11 anos cantava no Clube do Guri, programa de calouros de Porto Alegre, e aos 22 casou-se de vestido comprido com noivo de fraque na capela Mayrink, templo do pernosticismo social carioca.
SEGURANÇA FUGAZ Elis nunca foi uma artista publicamente envolvida com drogas. Pelo contrário. Ao longo de toda a década do tropicalismo ela hostilizou o desbunde e chegou a sugerir que de desligassem as tomadas dos palcos onde subisse Caetano Veloso, para que não pudesse ligar sua guitarra elétrica. Nada mais “careta”. Afinal, em sua casa havia uma garrafa de vermute, bebida improvável na prateleira de alguém que efetivamente procura álcool. Assim, a cocaína não entrou no quarto de Elis pela porta do modismo, mas precisamente pelo pique, pela sustentação que dá ao competitivo, pela segurança fugaz que oferece aos tensos. Nesse sentido, o próprio “pó” é a quintessência do caretismo.
Paradoxalmente, ela morreu quando se orgulhava de viver com um homem com quem “não poderia competir”, pois ao contrário de todos os esu namorados e maridos, ligados ao mundo do espetáculo, é um bem-sucedido advogado, que antes dela, jamais chegara sequer aos bastidores. “Passei anos complicando as coisas, agora quero voar”, dizia. E, de fato, pelas primeiras reações de quase todos os seus amigos, ela vivia não só um período de grande densidade artística, desde o sucesso do show “Trem Azul”, em 1981, como também d emuita felicidade pessoal.
Seu último disco, “Elis Regina”, vendeu 52 000 cópias, desempenho medíocre para uma estrela e auspicioso para um estreante. Mesmo vendendo pouco, ela era um dos melhores cachês de shows e, no fim das contas, a pobre menina de 1963 estava rica, mas, sempre perseguida pela maledicência, era acusada de avarenta, num mundo de invejas onde quem não é acusado disso tem fama de pródigo, pois nada há de mais anormal do que se ver num artista alguém normal, ou, pelo menos, alguém muito parecido com as demais pessoas.
Sua normalidade, tão pouco explorada, não se extingue na repetição do talento, mas vai a alguns pontos até mesmo raros. Nada tinha da falsa vaidade das estrelas. Recusou uma sugestão para que seu carro tivesse chofer, vestia-se conservadoramente e, na hora de construir uma casa na serra da Cantareira, passou numa empresa de pré-fabricados, mandou embrulhar uma e nela viveu feliz muitos anos. Jamais fez concessões ao escândalo ou ao gênero heroína de fotonovela. Todos os seus romances tiveram endereço e, se dependesse dela, a imprensa jamais os alcançaria.
“FAÇO, MAS COM MEDO” – Para todos, desde os amigos até os parentes, o segundo choque da morte de Elis, provocado pelo laudo médico, será, por algum tempo, o mais difícil de absorver. No entanto, é certo que sua memória haverá de rsistir às circunstâncias dramáticas do fim de sua vida. Só morta, Elis Regina conseguiu abrir o caminho para que a julgassem como artista, sem misturar a isso sua vida pessoal e suas decisões erráticas. Afinal, ninguém acreditava nessa pessoa audaciosa quando ela dizia que “morro de medo, faço todos os espetáculos me borrando de medo, todos os dias. Faço, mas com medo. E se mandar parar, eu paro, porque medo eu tenho”.
Amigos do casal garantem que Elis jamais usou cocaína na presença do advogado. Mas lembram que ela experimentou drogas pela primeira vez em 1980, estreando com um cigarro de maconha. A cocaína surgiu na sua viagem aos Estados Unidos no início de 1981 para acertar a gravação de um disco com o saxofonista Wayne Shorter. Antes disso, ela somente consumia cerveja e vodca.
O amargo brilho do pó Aos 36 anos, Elis Regina, a melhor cantora do Brasil, foi achada morta, trancada em seu quarto, onde tomara a derradeira dose de cocaína. A morte da melhor cantora brasileira provocou um choque nacional, assim que a notícia circulou pelo rádio e pela televisão. Cheia de vitalidade nos seus 36 anos, Elis Regina de Carvalho Costa, três filhos, passou metade de sua vida em estúdios, distribuindo uma voz impecavelmente afinada por 27 LPs, catorze compactos simples e seis duplos, que venderam algo como 4 milhões de cópias. Não é um recorde Roberto Carlos vendeu quatro vezes mais -, mas a qualidade é tão boa que lhe assegurou uma das mais sólidas reputações da música popular brasileira. A morte, no apartamento que ocupava nos Jardins, em São Paulo, foi chorada com lágrimas e canções entoadas por 25 000 fãs, amigos e parentes que a visitaram no velório do Teatro Bandeirantes, palco de seu maior sucesso, o show Falso Brilhante, no centro de São Paulo. Feitos os exames, emergiu uma sombria conclusão: Elis Regina, dizia o laudo médico, morreu pela intoxicação combinada de bebidas e cocaína.
Esse medo, porém, era convertido em agressividade nas relações cotidianas e em inspiração sublime no palco. E Elis, que sabia quem ela era, alcançava as malediciências que a perseguiam: “No dia em que alguém for reorganizar o seu histórico na pasta Elis Regina, vai ter muito trabalho. Eu não tenho a menor intenção de ser simpática a algumas pessoas. Me furtam o direito inclusive de escolher. Eu sou do contra. Sou a Elis Regina de Carvalho Costa que poucas pessoas vão morrer conhecendo”.
(Fonte: Veja, 27 de janeiro de 1982 Edição n° 699 Música Pág; 60/61 Memória/ Pág; 54/59)
(Fonte: http://www.correiodopovo.com.br – ANO 116 Nº 168 – PORTO ALEGRE, QUINTA-FEIRA, 17 DE MARÇO DE 2011 Geral – Cronologia)
(Fonte: http://www.guiadoscuriosos.com.br Aniversário – 17 de março de 2011)